PARIS — Até pouco tempo atrás, os parisienses diziam que o fascínio pelo rio Sena existia somente porque a televisão não transmite cheiro. A despeito de suas águas poluídas, um dos maiores símbolos da cidade sempre foi tratado com muito glamour, sobretudo no cinema.
No mundo real, se depender das autoridades francesas, o magnetismo pelo Sena será cada mais vez mais forte. Tanto o presidente Emmanuel Macron, quanto a prefeita Anne Hidalgo garantem: após um século de poluição, o cartão-postal foi finalmente “resgatado” e está pronto para os banhistas.
Graças à Olimpíada 2024, a despoluição, prometida por quase todos os prefeitos de Paris, nas últimas décadas, finalmente parece ter acontecido. Se tudo sair conforme o esperado, esse será um dos maiores e mais permanentes legados olímpicos da história dos jogos.
Macron e Anne prometeram o primeiro mergulho no “novo” Sena antes do início das competições, marcado para 26 de julho. Além de ser palco da festa de abertura, o rio também vai receber provas de triatlo e maratona aquática, com o aval do Comitê Olímpico Internacional, que vem monitorando a qualidade da água.
O avanço urbano colocará Paris ao lado de outras cidades europeias, como Zurique e Copenhague, que também alcançaram o feito de não só despoluir seus rios, mas também torná-los próprios para banho.
“Os avanços que Paris conseguiu fazer para as olimpíadas são um grande elemento para o futuro socioambiental da cidade”, disse Emmanuel Grégoire, vice-prefeito da cidade, em coletiva à imprensa, da qual o NeoFeed participou.
Assim como Paris, outras metrópoles do mundo tentam solucionar a poluição em seus principais afluentes há tempos.
Do outro lado do Canal da Mancha, o Tâmisa, em Londres, chegou a ser considerado biologicamente morto, pelo Museu de História Nacional, em 1957.
A partir dos anos 1970, porém, os ingleses acionaram um plano de tratamento massivo do seu “esgoto a céu aberto”, como os jornais na época definiam. Destruído na Segunda Guerra Mundial, o saneamento foi refeito e legislações com restrições ao uso de pesticidas, que acabavam chegando ao Tâmisa, foram criadas.
Como resultado, o Tâmisa “ressuscitou”, e atualmente conta mais de 100 espécies de peixes, além de outros tipos de vida marinha, como focas. Mesmo assim, suas águas continuam impróprias para banhistas.
E a despoluição da Baía de Guanabara?
Nas Olimpíada do Rio de Janeiro, em 2016, algumas modalidades aquáticas, como as provas de vela, chegaram a ser disputadas nas águas da Baía de Guanabara.
Assim como Paris está fazendo agora, o Rio também prometeu deixar um legado olímpico positivo, reduzindo a poluição em 80%, mas nunca cumpriu. O projeto consumiu cerca de R$ 2,7 bilhões e as obras devem ser concluídas apenas 2028 — pelo menos, é o que dizem.
O êxito de Paris com o Sena está, entre outras coisas, no verdadeiro plano de guerra que a França adotou há cerca de dez anos. A despoluição do rio foi a pedra angular para a escolha da cidade como sede das olimpíadas.
Um montante de € 1,4 bilhão (cerca de R$ 8,5 bilhões) já foi investido no projeto, que inclui obras de modernização do sistema de águas pluviais e o redirecionamento de redes de esgoto, eliminando as saídas que embocavam no rio.
Desde o século 19, muitas residências parisienses tinham seus canos ligados ao sistema de águas pluviais da cidade. Em tempos normais, a água utilizada nas casas fluía por túneis subterrâneos até os centros de tratamento, na periferia. Quando chovia muito, no entanto, o sistema ficava sobre carregado e o excesso escoava para o Sena.
A prefeitura teve de intervir em mais de 20 mil imóveis na região metropolitana de Paris para fazer as adequações.
Já no centro da cidade, mais de 170 casas-barco que ficam atracadas no Sena também obrigadas a se conectarem a redes de esgotos portuárias. Antes, todos os dejetos eram despejados diretamente no rio, sem nenhum tipo de tratamento.
O "piscinão" parisiense
Além do pente-fino nas residências, o plano também envolveu obras enormes. Ao custo de € 90 milhões, a mais faraônica delas é uma catedral subterrânea para estocar água da chuva.
O reservatório de Austerlitz, inaugurado em maio, tem 50 metros de largura e 30 metros de profundidade, e pode armazenar cerca de 50 milhões de litros — equivalente a 20 piscinas olímpicas. A ideia é que esse enorme “piscinão” absorva a água excedente.
Especialistas dizem que, com a nova estrutura, os despejos de água não tratada no Sena devem acontecer, no máximo, duas vezes ao ano, melhorando muito os níveis de bactérias presentes na água.
O sonho das autoridades francesas é devolver ao Sena a vida perdida, nos últimos 400 anos. Do século 17 a 1923, o rio era uma festa. Em dias de calor, os moradores se reuniam em suas margens para se refrescarem. As provas aquáticas das olímpiadas de 1900 aconteceram em suas águas.
Mas, com o crescimento acelerado e desordenado da cidade, o Sena foi ficando mais e mais sujo. Até 1923, quando os banhos foram proibidos. Na década de 1960, o rio foi declarado biologicamente morto.
Mesmo com os avanços recentes, os parisienses continuam céticos. Em março, a ONG Surfrider Foundation publicou resultados de análises realizadas durante seis meses. Os resultados mostraram uma alta concentração de duas bactérias de origem fecal (Escherichia coli e Enterococcus faecalis). Para os ambientalistas, o Sena não é seguro para banho.
Por outro lado, a prefeitura atribui a má qualidade da água em algumas medições às chuvas históricas que Paris recebeu no começo da primavera (entre março e junho, no Hemisfério Norte). Sem chuva, o rio tende a ficar limpo, argumenta o poder público.
Os organizadores da Olimpíada admitem, porém, que em caso de chuva forte nesse verão, as provas de maratona aquática podem ser adiadas em alguns dias.
No espectro político, a despoluição do Sena virou uma espécie de vitrine para lideranças como Macron e Anne. Depois dos jogos, a prefeitura acena com a promessa de “praias” às margens do rio. As autoridades estão percebendo que conquistar a simpatia dos franceses, depois de tanto tempo de descaso, pode ser tão difícil quanto a própria despoluição do Sena.