San Sebastián — A história de garotinha forçada a fazer um bolo para o aniversário de Saddam Hussein pode levar o cinema do Iraque a comemorar uma façanha. Depois de mandar 13 representantes, sem nunca ter garantido uma vaga, o país, pela primeira vez, tem chances de conseguir uma histórica indicação ao Oscar de melhor filme internacional em 2026.
Só o fato de The President’s Cake conquistar o público por onde passa já é um feito na trajetória do candidato iraquiano a uma das cinco vagas da categoria na 98ª edição do prêmio da Academia. Afinal, o Iraque nunca foi um país de expressiva cultura cinematográfica por ter enfrentado tantas invasões, guerras e transformações políticas.
Dirigido por Hasan Hadi, o drama foi ovacionado nas sessões realizadas na última semana na 73ª edição do Festival Internacional de Cinema de San Sebastián (SSIFF), a ser encerrada neste sábado. O nome da mostra que selecionou o filme para o evento espanhol, sediado no balneário basco, já traduz o espírito de The President’s Cake: Perlak — "pérola", em basco.
Aqui a câmera segue os passos de Lamia (Baneen Ahmad Nayyef), uma menina de nove anos que mora em aldeia iraquiana com a avó, Bibi (Waheed Thabet Khreibat). Seu mundo desmorona quando ela é sorteada na escola para a “honra” de levar um bolo para a celebração do aniversário do presidente.
Sim, a criança é obrigada a aceitar a missão, mesmo que a família não tenha condições de comprar os ingredientes para preparar a iguaria. Do contrário, a sorteada é denunciada por “deslealdade”, o que pode levar à prisão ou até mesmo à morte.
A trama é ambientada no início da década de 1990, quando o então ditador do Iraque forçava a população a comemorar seu aniversário. Independentemente das difíceis condições econômicas do país, a imposição era sagrada todo dia 28 de abril.
Na época, o país sofria com as sanções econômicas do Conselho de Segurança da ONU, impostas poucos dias após o Iraque invadir o Kuwait, em agosto de 1990. As medidas contra o regime de Hussein só agravavam a inflação, o desemprego e a pobreza.
A casa de Lamia é uma das afetadas, assim que a avó Bibi é dispensada do trabalho, a tarefa de entregar o bolo se torna ainda mais desafiadora. Desesperada, a avó chega a cogitar entregar a neta para ser criada por uma família de conhecidos com mais recursos, para que ela consiga fazer o tal bolo.
Lamia acaba fugindo, embarcando em aventura na cidade mais próxima, em busca da farinha, do açúcar, dos ovos e do fermento. Os ingredientes não são apenas caros, mas difíceis de encontrar, com os mantimentos praticamente sumindo das prateleiras das vendas no Iraque, com as sanções.
Para acompanhá-la em perigosas negociações pelo mercado clandestino, a protagonista tem apenas um galo de estimação, chamado Hindi, que corre o risco de virar moeda de troca. Por sorte, ela cruza no caminho com o seu melhor amigo, Saeed (Sajad Mohamad Qasem), disposto a ajudá-la.
The President’s Cake’ comove por sua simplicidade narrativa, o que não compromete a sua eficiência: a de mostrar como crianças tiveram suas infâncias roubadas na ditadura de Hussein. Embalado em tom de fábula, apesar das circunstâncias realistas, o filme só prova que o mais importante é saber contar uma boa história, mesmo que os recursos sejam escassos.
Os prêmios já recebidos atestam a sua qualidade artística e, ao mesmo tempo, sinalizam suas chances de chegar à cerimônia do Oscar.
Em sua première mundial, no Festival de Cannes, a produção (marcando a primeira participação de um título iraquiano na história do evento francês) levou dois troféus: o Prêmio de Público da Quinzena dos Realizadores e o Caméra d’Or, entregue ao melhor primeiro longa-metragem apresentado em qualquer uma das mostras oficiais.
Só o peso desses prêmios já é suficiente para fazer The President’s Cake’ figurar nas primeiras listas de apostas para as indicações ao Oscar de melhor filme internacional.
É muito provável a sua presença, pelo menos na “shortlist”, com os 15 pré-candidatos, que será anunciada em 16 de dezembro. Já os cinco finalistas só serão conhecidos em 22 de janeiro de 2026, com todas as demais indicações.
Os concorrentes
Por enquanto, outros vencedores de Cannes despontam entre os candidatos mais fortes. Um deles é o representante brasileiro, O Agente Secreto, de Kleber Mendonça Filho. O thriller que revisita a ditadura militar de uma perspectiva cotidiana também saiu com dois prêmios na Riviera Francesa: diretor e ator (para Wagner Moura).
Ainda promete brigar por uma das cinco vagas Sentimental Value, drama sobre reconciliação familiar com o qual o norueguês levou o Grande Prêmio do Júri de Cannes.
Outra aposta é Un Simple Accident, que deu a Palma de Ouro a Jafar Panahi. O diretor é iraniano, mas entra na disputa representando a França, com a história de ex-preso político que, ao reencontrar o seu antigo torturador, resolve sequestrá-lo.
The Voice of Hind Rajab, candidato da Tunísia, também está no páreo, depois de levar o Grande Prêmio do Júri de Veneza. E, como The President’s Cake’, o filme de Kaouther Ben Hania toca o espectador com a história de uma garotinha. Mais especificamente aqui, com a reconstituição da tragédia da menina palestina de seis anos morta em Gaza, em janeiro de 2024, apesar de seus telefonemas aos serviços de emergência, implorando por socorro.
Dos países citados aqui, o Iraque é o único que nunca disputou um Oscar. A protagonista de The President’s Cake’ sobrevive, sim, aos seus infortúnios. Mas paga um preço alto por isso. É obrigada a entender muito cedo o que é autoritarismo e corrupção, perdendo a inocência e o encantamento da infância pelo caminho.