O som chega antes da imagem. Quando a porta do 8º andar do Instituto Moreira Salles, em São Paulo, se abre, é a vibração metálica de uma bateria que primeiro ocupa o espaço, seguida do “wah-wah” da guitarra, as cordas, os metais e o coro entoando: “shaaaaat”. É a trilha do filme Shaft (1971), de Gordon Parks, e parece anunciar o que veremos: uma obra feita de ritmo, tensão e beleza.

A exposição Gordon Parks: A América sou eu — a maior já dedicada ao artista na América Latina — começa pelo ouvido, talvez porque Parks soubesse que ver também é uma forma de escutar.

O fotógrafo iniciou a vida profissional como pianista em um bordel, para ajudar a levar comida para casa.  E, como o som, expandiu-se por todos os espaços possíveis: foi músico, poeta, escritor, cineasta e fotógrafo.

Mesmo sem concluir o ensino médio, recebeu mais de 40 títulos universitários honorários, reconhecimento à excelência e amplitude de sua obra. Em quase tudo o que fez, destacou-se. Foi o primeiro fotógrafo negro contratado pela revista Life e o primeiro afro-americano a produzir e dirigir grandes filmes em Hollywood.

O crítico literário Henry Louis Gates Jr., diretor do Centro de Estudos Africanos da Universidade Harvard, sintetizou: “Gordon Parks é o fotógrafo negro mais importante da história do fotojornalismo, ponto.”

Para a curadora assistente da mostra, Iliriana Fontoura Rodrigues, Parks criava movido por um instinto de sobrevivência.

“Ele perdeu a mãe cedo, aos 15 anos, e saiu de casa. Tentou morar com a irmã, não deu certo. Dormiu na rua, passou frio e fome, se envolveu em brigas”, conta ela, em entrevista ao NeoFeed. “Em sua biografia, ele se pergunta: ‘Como eu sobrevivi?’ Ele não tinha nada a perder”.

Caçula de uma família de 15 filhos, Parks nasceu em 1912, no Kansas, em um país ainda marcado pela segregação racial. Sobre esse tema, realizou um de seus trabalhos mais emblemáticos: Segregation Story, série em cores que documenta o cotidiano da família Thornton, moradores de Mobile, Alabama, nos anos 1950.

A fotografia como arma

Uma mulher e uma menina negras, com penteados da moda, usando vestidos alinhados e sapatos lustrados, estão diante da entrada de uma loja de departamentos. A cena seria banal, não fosse o letreiro luminoso logo acima: “Entrada para negros”.

Não há violência explícita nas imagens — apenas o dia a dia da família. Fotografias que retratam com dignidade pessoas negras em momentos corriqueiros, mas que impactaram os leitores majoritariamente brancos da Life, em setembro de 1956.

“Nunca ceder aos estereótipos criados sobre a população negra é uma ação muito poderosa", observa Iliriana. "Ele sabia o que estava fazendo quando escolhia apresentar essas pessoas dessa forma.”

Nos detalhes, Parks expõe o racismo e a violência estrutural que marcavam o cotidiano da família Thornton e de tantos afro-americanos. O fotógrafo usava suas armas — a câmera, a narrativa — para combater os preconceitos do público. Mostrava que as famílias negras se preocupavam com as mesmas coisas que as brancas: o pagamento da casa, a escola dos filhos, a fé.

Sem título, Rio de Janeiro, 1961 (Foto: Gordon Parks/Cortesia © Fundação Gordon Parks)

"Martin Luther King Jr.", Washington, DC, 1963 (Foto: Gordon Parks/Cortesia © Fundação Gordon Parks)

Sem título, Mobile, Alabama,1956 (Foto: Gordon Parks/Cortesia © Fundação Gordon Parks)

"Domingo de manhã (Burt Collins e Pauline Terry Collins)", Detroit, Michigan, 1950 (Foto: Gordon Parks/Cortesia © Fundação Gordon Parks)

Sem título, Harlem, Nova York, 1948 (Foto: Gordon Parks/Cortesia © Fundação Gordon Parks)

"Mulçumanos negros. Mulheres mulçumanas negras", Chicago. Illinois, 1953 (Foto: Gordon Parks/Cortesia © Fundação Gordon Parks)

"Mulher e cachorro na janela", Harlem, Nova Iorque, 1943 (Foto: Gordon Parks/Cortesia © Fundação Gordon Parks)

Sem título (Muhammad Ali), Miami Beach, Flórida, 1970 (Foto: Gordon Parks/Cortesia © Fundação Gordon Parks)

"Um grande dia para o hip hop", Harlem, Nova York, 1998 (Foto: Gordon Parks/Cortesia © Fundação Gordon Parks)

Gordon Parks ao lado de seu piano, final anos 1980 (Foto: David Finn, Biblioteca da Galeria Nacional de Arte, Washington, DC/ commons.wikimedia.org)

Nessa série, aliás, ele demonstra seu domínio técnico apurado. Os filmes daquela época, comenta Iliriana, não eram feitos para registrar peles retintas, deixando-as geralmente acinzentadas ou chapadas.

“Mas, nessas fotos, conseguimos ver os múltiplos tons de marrom das peles das pessoas pretas, sejam mais retintas ou mais claras. Isso é impressionante”, explica a curadora.

Parks registrou de perto momentos e lideranças decisivas da história recente dos Estados Unidos. Fotografou a Marcha por Empregos e Liberdade, em Washington, onde Martin Luther King Jr. pronunciou o célebre discurso com a frase “I have a dream” ("Eu tenho um sonho").

Por ser negro, teve acesso a figuras como Malcolm X e foi o primeiro a retratar integrantes da Nação do Islã, organização negra muçulmana, em reportagem para a Life. A exposição em São Paulo também inclui um ensaio sobre Muhammad Ali, com cenas pouco vistas.

A viagem ao Brasil

O mesmo olhar próximo se revela nas fotos feitas no Brasil. Em 1961, Parks viajou ao Rio de Janeiro para documentar a vida difícil nas favelas cariocas. Elegeu como sua personagem a família de migrantes nordestinos da Silva, moradores da Catacumba.

Ele se comoveu especialmente com o menino Flávio, que sofria de bronquite crônica. Além de registrar a dura realidade da família, Parks mostrou o que havia de universal: crianças jogando futebol na praia, idas à igreja, laços familiares. Essas imagens, inéditas até agora, estão reunidas na mostra.

A reportagem de Parks teve desdobramentos concretos. Após sua publicação, leitores da Life enviaram doações à família, que pôde comprar uma casa no subúrbio, e Flávio foi levado aos Estados Unidos para tratar da doença.

“Estamos falando de alguém extremamente consciente de sua comunidade — a mesma que o impulsionou a chegar onde chegou”, observa Iliriana. “Ele tinha cuidado com as pessoas retratadas; fazia parte de suas vidas. Tornou-se amigo de Muhammad Ali, padrinho da filha de Malcolm X.”

Esse vínculo com o garoto brasileiro inspirou ainda seu primeiro filme, o curta Flávio (1964). O documentário mistura fotos e cenas filmadas, narradas em primeira pessoa pelo próprio menino.

A produção é considerada um dos primeiros filmes dirigidos por um homem negro no Brasil e integra a história do cinema da diáspora africana.

Mais tarde, Parks escreveu, produziu e dirigiu The Learning Tree (1969), do qual também compôs a trilha sonora, seguido por Shaft (1971) — cuja trilha de Isaac Hayes venceu o Oscar de Melhor Trilha Sonora Original, a primeira estatueta concedida a um artista negro fora das categorias de atuação. Em seguida, vieram outros seis filmes.

Como resume, Iliriana: “Parks era inquieto em seu processo criativo. Produziu muito. Nascido em 1912 e falecido em 2006, acompanhou praticamente todo o século 20”.