O que lhe vem à mente quando ouve falar em trufas? Muito provavelmente você é transportado para uma “caçada” em algum bosque da França ou da Itália: os trufaios, com seus cães farejadores, em busca do fungo raro que costuma nascer nas raízes de carvalhos centenários.

Mas esse tesouro gastronômico pode ser cultivado e, pasme, até prosperar em regiões de clima tropical, como vem acontecendo por aqui. Yes, nós temos trufas.

E, marco inédito no País, na temporada 2024/2025, a empresa gaúcha Paralelo 30, pioneira no cultivo da iguaria, colheu 50 quilos de Tuber floridanum. Conhecida como Sapucay, foi a primeira variedade encontrada em solo nacional há oito anos.

É um volume considerável, se consideradas as pequeníssimas quantidades nas quais a trufa é usada — uma pitada do fungo ralado ou algumas poucas e finas fatias do ingrediente já são suficientes para dar aroma e sabor aos mais diversos preparos.

A Sapucay foi descoberta em 2016 pelo biólogo Marcelo Sulzbacher no pomar de noz-pecã da Paralelo 30, em Santa Cruz do Sul, cidade a cerca de duas horas de Porto Alegre. Um dos principais nomes nas pesquisas de fungo no País, dois anos depois, ele fundou a Terroir Sul, dedicada ao comércio de cogumelos silvestres e trufas nacionais e importadas.

Em 2021, em parceria com o engenheiro agrônomo Márcio Frantz, o biólogo fundou a Simbiose Tartufo, empresa especializada no fornecimento de mudas de nogueira-pecã inoculadas com esporos e em consultoria técnica para plantio e manejo de plantações com potencial trufícola.

“A nogueira-pecã se adapta bem ao clima e ao solo brasileiros. Suas raízes são mais espessas e fibrosas, o que facilita o contato e a penetração dos esporos, tornando mais rápida e eficaz a formação da associação micorrízica [um tipo de simbiose] necessária para, depois, produzir as trufas”, diz Sulzbacher ao NeoFeed.

Embora o cultivo de Sapucay seja recente, ela já aparece em pratos da alta gastronomia brasileira. Em São Paulo, Janaína Torres, do celebrado Dona Onça, oferece canapés de tartare de carne com lâminas de Sapucay e capellini na manteiga com a iguaria. Em Porto Alegre, o chef Marcelo Schambeck, do Capincho, aposta no ingrediente para realçar o entrecôte de angus.

No Rio de Janeiro, Rafa Gomes, do famoso Tiara, serve Sapucay laminada sobre nhoque de batata-baroa. Os clientes do restaurante podem adicioná-la em outros pratos, mediante um adicional de R$ 94 a cada três gramas. Também há gourmands que compram diretamente da Terroir Sul, caso do músico Ed Motta.

De aroma, sabor e preço mais leves

Para que as trufas frutifiquem fora de seu habita original, é preciso dar uma mãozinha à natureza. Um dos principais cuidados é com a irrigação. A rega deve ser equilibrada, sem encharcar a terra, mas sem deixá-la seca demais. "E o ideal é evitar o cultivo em conjunto com outras plantas, porque as trufas podem ‘perder espaço’ e desaparecer das raízes”, ensina o biólogo.

Não se deve comparar a Sapucay com as iguarias europeias, como as brancas de Alba, originárias do Piemonte, na Itália, ou as negras de Périgord, no sudoeste francês. A brasileira possui características diferentes, dadas pelo terroir onde é cultivada — de aroma e sabor leves, adocicados, com notas de castanhas e terra úmida, revela estudo da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), no Rio Grande do Sul.

O biólogo Marcelo Sulzbacher foi o primeiro a encontrar uma trufa em solo brasileiro (Foto: Marcelo Brum)

Mais suave do que as trufas europeias, a Sapucay é um pouco adocicada, com notas de castanhas e terra úmida (Foto: Marcelo Brum)

No restaurante gaúcho Capincho, a trufa Sapucay realça o sabor do entrecôte angus com molho de cogumelos, acompanhado de batatinhas assadas e folhas amargas com melado de maçã e queijo Etchekoa (Foto: Instagram @capinchorestaurante)

No pomar de noz-pecã da Paralelo 30, foi encontrada a primeira trufa em solo brasileiro (Foto: pecan.com.br)

A trufa rubi está sendo cultivada em um sítio na Serra da Mantiqueira (Foto: Marcelo Brum)

Outra diferença é o tempo de maturação dos fungos. Na Europa, eles demoram oito anos até que as trufas estejam prontas para o consumo. No Brasil, levam três anos. Foi assim, pelo menos, no Sítio Jagarubá, na cidade paulista de Morungaba, na Serra da Mantiqueira, onde o engenheiro agrônomo Fernando Heer colheu sua primeira safra no final do ano passado.

Além de suas propriedades organolépticas únicas, a Sapucay tem mais um atrativo de peso: o preço. No mercado internacional, o quilo das trufas europeias pode chegar a € 4,5 mil (cerca de R$ 25 mil), enquanto a nacional varia entre R$ 8 mil e R$ 10 mil.

Outro sinal inequívoco do potencial brasileiro para a truficultura foi dado no ano passado, quando Márcio Frantz descobriu a variedade Rubi (Tuber lyonii) também nos pomares de nogueiras-pecã de Santa Cruz do Sul. Com notas de terra molhada e castanhas frescas, ela está começando a ser difundida pela Simbiose Tartufo no Sul e no Sudeste.

Ainda sem produção em larga escala, a Rubi despertou a curiosidade de alguns chefs. Carlos Kristensen, à frente do premiado Hashi em Porto Alegre, criou um jantar especial com a novidade.

Os fungos e o caos climático

A possibilidade de produzir o fungo além da Europa surge em um momento oportuno. Nos últimos anos, a crise climática tem prejudicado o cultivo europeu, cujas variedades dependem de solos frios e úmidos.

Com o aumento das temperaturas, redução das chuvas e verões mais quentes e secos, as árvores-hospedeiras ficam estressadas, comprometendo a quantidade e a qualidade da produção. Essas condições extremas têm atraído o interesse de pesquisadores de vários cantos do mundo.

O pesquisador Tiene Grebenc, do Instituto Florestal da Eslovênia, por exemplo, está à frente de uma rede internacional de especialistas, da qual Marcelo Sulzbacher faz parte, para o estudo da viabilidade do cultivo de trufas em diversos climas.

“Brasil, Alemanha, Finlândia (zona Boreal, com bioma de floresta temperada-fria), Arábia Saudita e Tailândia são alguns países que participam desse movimento internacional”, conta ele ao NeoFeed. Recentemente, a Indonésia também se juntou à iniciativa.

Como defende o biólogo brasileiro, é fundamental realizar estudos nas áreas mais quentes e secas do planeta, especialmente para ver quais são os limites das trufas fora de seu eixo natural de crescimento.

Por enquanto, é cedo para saber se a Sapucay e a Rubi (e outros tipos além da Europa) vão ganhar escala e protagonismo na alta gastronomia mundial. Mas Marcelo está otimista.

“Nossas pesquisas estão perto de responder a essas questões”, afirma ele. “Já conseguimos provar que temos chance de produzir trufas fora da Europa com excelência e respeito ao meio ambiente.”

Para ele, essa oportunidade não se resume ao desenvolvimento de um novo nicho de mercado, mas representa uma ponte entre pesquisa científica, inovação e sustentabilidade: “Estamos criando um ecossistema cultural”.