A situação é grave - e exige urgência. Este é o tom do relatório recém-lançado pela FAIRR sobre os desafios impostos pela insegurança hídrica aos sistemas agroalimentares.
Com cerca de 400 integrantes e US$ 80 trilhões sob gestão, a aliança global de investidores do agrifoodtech alerta: mantidos os padrões atuais de uso da água doce, as companhias agropecuárias estão sujeitas a aumentos nos custos operacionais, interrupções na cadeia de suprimentos e queda nos retornos para os acionistas.
Como as lavouras e as criações respondem por cerca de 70% de toda a captação de água potável do mundo, a construção de modelos de produção mais sustentáveis e resilientes impacta não só o agronegócio como a economia global — as pessoas e o planeta.
“A escassez hídrica não é mais uma preocupação ambiental distante; é uma questão financeira relevante que moldará os mercados na próxima década”, diz Sudip Hazra, diretor do Instituto de Investimento Sustentável First Sentier MUFG, em comunicado. “Investir em resiliência hídrica é um imperativo estratégico para salvaguardar o valor a longo prazo de todo o setor agroalimentar.”
Caso o ritmo e a intensidade da exploração de água doce se mantenham nos patamares de agora, a insegurança hídrica pode reduzir o crescimento econômico em 6% até 2050, aponta o Banco Mundial. E não é para menos: 60% do PIB global (US$ 58 trilhões) é altamente dependente da disponibilidade de água.
Nos cálculos da FAIRR, os custos da inação são cinco vezes maiores do que os gastos para enfrentar a escassez hídrica. Não fazer nada agora pode, em um futuro bem próximo, causar um rombo de US$ 200 a US$ 300 bilhões às indústrias de todos os setores.
“Lidar com a insegurança hídrica não se resume apenas à gestão de riscos negativos, mas também pode criar valor futuro para as empresas”, lê-se no relatório An Investor Primer: Water Insecurity In the Agri-Food Value Chain. “Suas retiradas de água são cruciais para determinar sua viabilidade financeira.”
Um estudo da BlackRock, de 2023, indica: as organizações “mais eficientes” em água costumam proporcionar retornos mais polpudos aos investidores. Em áreas de grande estresse hídrico, o ganho dessas empresas é até um pouco maior.
Uma das medidas a serem adotada com urgência pelos investidores é exigir transparência das empresas — dados bem apurados sobre uso e riscos hídricos em suas operações e cadeias de suprimentos. Eles devem ainda reforçar a importância da padronização das métricas para permitir a comparação entre companhias.
E, por fim, torna-se imprescindível estabelecer metas com foco em resiliência hídrica e redução real do uso total de água. “Metas ambiciosas”, frisa o documento da FAIRR.
De acordo com o relatório, por exemplo, apenas 19% dos maiores produtores de proteínas do mundo estabeleceram objetivos bem definidos para reduzir sua exposição à insegurança hídrica.
"Cegueira hídrica"
Apesar de a água ser o recurso mais precioso e mais explorado do planeta, o mundo vive o que a WWF define como “cegueira hídrica”. “Governos e empresas têm invariavelmente se concentrado em usos diretos, tratando rios como meros encanamentos, zonas úmidas como ‘terrenos baldios’ e lagos e aquíferos como reservas inesgotáveis”, escrevem os especialistas da ONG de preservação ambiental, no levantamento High cost of cheap water.
À ação humana soma-se o impacto dos eventos associados à crise climática, como as mudanças nos padrões de chuva e o derretimento de geleiras. Todos esses fatores juntos, um alimentando o outro, ameaçam a saúde dos ecossistemas de água doce.
A degradação é tanta que a natureza não está conseguindo acompanhar o ritmo e a intensidade da exploração dos reservatórios hídricos. Dois terços dos grandes rios do mundo já não fluem livremente e, desde 1970, um terço das áreas úmidas foi perdido, mostra o estudo da WWF.
Atualmente, 26% da população global não têm acesso à água potável, metade está exposta à escassez pelo menos uma vez por mês e 55 milhões são afetados anualmente por secas.
Na prática, a água começa a se transformar de recurso renovável em recurso finito, apontam pesquisadores italianos na revista científica Helyon.
Globalmente, nos últimos 125 anos, o consumo de água aumentou quase oito vezes — enquanto a população, cinco. E, até 2050, para dar de comer a um planeta com 10 bilhões de pessoas, nos cálculos do Banco Mundial exigirão 60% mais alimentos e de 15% a 20% mais água.
Como a insegurança hídrica está intrinsecamente associada à insegurança alimentar, sem soluções conjuntas, é impossível avançar rumo a um futuro mais sustentável, inclusivo e justo. Afinal, quando a disponibilidade de água diminui, a produtividade agropecuária é a primeira a ser atingida.
Em regiões de grande estresse hídrico, como em áreas da África Subsaariana e do Oriente Médio, a falta de água já causa uma redução de 10% a 50% nas colheitas de culturas como milho, arroz e trigo — algumas das mais dependentes de irrigação.
A competição por recursos hídricos pode inclusive levar a conflitos geopolíticos, migrações em massa e instabilidade social. Alguns analistas, como o Fórum Econômico Mundial, já se referem à água como a próxima “fronteira de guerra”.
Da torneira, não
A boa notícia é que os inovadores do ecossistema de inovação agroalimentar vêm se dedicando à criação de tecnologias de gestão hídrica mais eficientes — em todas as etapas da cadeia produtiva; da fazenda às nossas mesas.
Avançados métodos de irrigação, como por gotejamento e por microaspersão, substituem as tradicionais inundações. Graças aos avanços da genética vegetal, espécies mais resistentes à seca são desenvolvidas nas bancadas dos laboratórios de pesquisa.
A agricultura de precisão, com seus drones, satélites e programas de inteligência artificial, leva água somente onde e quando necessário. Ao preservar a qualidade do solo, as técnicas regenerativas ajudam a reter a umidade da terra e evitar a evaporação. Novas rações animais ajudam a diminuir a pegada hídrica da agropecuária — para se obter um quilo de carne bovina, por exemplo, consome-se de 15 mil a 20 mil litros de água, com a maior parte usada na dieta do rebanho.
Outra área fundamental para a garantia da segurança hídrica é o combate ao desperdício de alimentos. De toda a água consumida pelos sistemas agroalimentares, 25% se perde quando o mundo põe fora um terço de toda a comida produzida.
A crise da água e a garantia de mesa farta exigem uma mudança radical de paradigmas.
“O pensamento ultrapassado do século 20 não pode resolver a insegurança hídrica porque a água não vem de uma torneira, ela vem da natureza”, defendem os especialistas da WWF.
“Precisamos começar a tratar rios, lagos, pântanos e aquíferos como os sistemas dinâmicos e provedores de vida que são, especialmente na era da incerteza climática”, complementa.
O recado está dado. E ele é para todos nós — individual e coletivamente, como sociedade civil, governos, empresas e investidores.