A 88 voluntários foram apresentados vários frascos de leite. Diferiam uns dos outros o tempo de engarrafamento da bebida — 15, 25, 30 e 40 dias. Algumas embalagens estavam datadas; outras, não. Os participantes foram então convidados a cheirar cada um dos produtos e indicar quais eles topariam tomar.
Em diversos momentos, o olfato “autorizava” um leite que era recusado, quando apresentado em uma garrafa com o rótulo de sua idade. O mesmíssimo leite. O que isso significa? Que não dá para confiar em nossos sentidos? Não. Que os prazos de validade podem ser uma armadilha para o desperdício de alimentos.
Liderada pelo americano Brian Roe, professor da Universidade Estadual de Ohio, a “pesquisa do leite” já é um clássico. Ainda que as características sensoriais da comida estejam preservadas, a simples inscrição da data de sua fabricação aumenta em até 40% a probabilidade de ela ser posta no lixo, lê-se no artigo Discard intentions are lower for milk presented in containers without date labels, publicado na revista científica Food Quality and Preference.
O inverso também é verdadeiro. Devido a um problema, provavelmente, de processamento, um dos leites da experiência tinha um odor estranho, apesar de “novo”. Pois bem, sem a informação do frescor da bebida, ninguém quis tomá-la. Mas quando oferecida em uma embalagem com datação recente, os participantes aprovaram-na imediatamente.
Nenhum problema se as inscrições com prazo de validade fossem indicativas de segurança. Mas não são. Majoritariamente, apontam a data a partir da qual os produtos começam a perder qualidade.
Uma questão é o prazo que vencido torna os alimentos uma ameaça à saúde. Outra coisa, completamente diferente, é o período que ultrapassado leva a comida a perder sua potencialidade máxima. Quando ela começa a apresentar alterações em seu valor nutricional e/ou em suas características sensoriais, como sabor, aroma, textura e aparência.
E, como lembram os analistas da ONG americana ReFED, focada no combate ao desperdício, a maioria das doenças deflagradas pela alimentação acontece pela ingestão de comida infectada e não de comida velha.
Confusão global
Pesquisadores da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos avaliaram os estudos realizados entre 2020 e 2022, em todo o mundo, para concluir: a má interpretação dos prazos de validade é um problema global. E dos mais sérios.
No mundo, seis em cada dez pessoas rejeitam alimentos prestes a expirar. Nos Estados Unidos, a confusão leva ao descarte de 80 milhões de toneladas de comida, por ano, aponta a ReFED. Pelo mesmo motivo, as famílias britânicas se desfazem, anualmente, de quase 7 milhões de toneladas de alimentos, o equivalente a cerca de 35% de tudo o que elas adquirem.
No Brasil, por causa do vencimento, só os supermercados põem fora 36,9% de seus produtos — um prejuízo anual de R$ 3,1 bilhões; ou 0,7% do faturamento do setor.
A confusão compromete, inclusive, a doação de comida a quem tem fome. Pelas leis brasileiras, por exemplo, a exposição, comercialização e distribuição de alimentos fora da data estipulada pelos fabricantes é crime passível de multa e cadeia.
"Valido até" X "antes de"
Com a crise climática, o crescimento exponencial da população e a ameaça à segurança alimentar global, rótulos pouco precisos são um entrave ao desenvolvimento sustentável.
Não à toa, mundo afora, cientistas da alimentação, estudiosos do desperdício, ativistas e representantes da indústria agroalimentar estão em defesa de um sistema de datação baseado na ciência, com informações claras, precisas e padronizadas.
A exemplo de vários países, como os da União Europeia, Reino Unido, Noruega, Canadá e Estados Unidos, aqui, no Brasil, há um movimento em defesa da adoção do termo "consumir preferencialmente antes de" — o equivalente ao "best before", dos anglófonos.
"O conceito de 'best before' permite uma ampliação da janela de consumo, sempre respeitando os critérios de segurança e saúde", escrevem João Dornellas, presidente executivo da Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (ABIA), e Vanessa de Amaral Franco, diretora jurídica, compliance e sustentabilidade da entidade, em artigo para o relatório Propostas para o Brasil 2023-2026 — Agronegócio, elaborado pela Fiesp.
O termo porém só seria usado em produtos não perecíveis e de baixo risco de contaminação, desde que atendidas as orientações de armazenamento determinadas pelo fabricante. Fazem parte do grupo, macarrão, conservas, grãos, sucos de frutas, leite UHT, enlatados, leite condensado, geleia, chocolates, biscoitos... a lista é enorme — tão grande que a validade vencida é a principal causa do desperdício no varejo.
O "consumir preferencialmente antes de" não se aplicaria aos alimentos perecíveis, "em razão de seus aspectos microbiológicos", defendem Dornellas e Vanessa, citando carnes in natura, leite pasteurizado e queijos frescos, por exemplo. Para tais produtos, o "válido até" segue adequado.
A mudança nas inscrições pode parecer firula semântica, só que não. No Brasil, a troca tem o potencial de reduzir em 10% a perda alimentar no varejo e mais 10% nos lares — o que somado proporcionaria uma economia anual de R$ 735 milhões.
Enquanto não acontece, lembra o engenheiro de alimentos Ary Bucione, sócio-fundador da consultoria NutriConnection, em entrevista ao NeoFeed: "Segundo o Guia 18/2024, da Anvisa, pode ser realizado o estudo de acompanhamento, logo após o inicio da comercialização do alimento para confirmar o prazo de validade previamente estabelecido".
O impacto da datação no descarte de comida é tão grande que o parlamento europeu e países como a Alemanha estudam retirar a validade de produtos como café, arroz, massa seca, geleias, picles, entre outros. "Tudo para ajudar a reduzir o desperdício de alimentos que ainda se encontram em condições adequadas e seguras de consumo", escrevem Dornellas e Vanessa.
Criatividade a mil
Para além do campo regulatório, pesquisadores e inovadores do ecossistema agrifoodtech se empenham no desenvolvimento de ferramentas capazes de aferir com acurácia o frescor dos alimentos perecíveis.
A startup japonesa Cool Innovation desenvolveu um sistema inovador de refrigeração, que, em testes, reduziu o desperdício em 95%. Com o sistema Hyōjun, os morangos foram mantidos frescos por cerca de um mês. As uvas, por 90 dias; e a alface, por 45.
As inovações vêm de todos os cantos do planeta. A Freshtag, da startup sueca Vitsab, funciona à base de um código de cores — verde, amarelo e vermelho, como os sinais de trânsito. Afixada na embalagem, a etiqueta indica, em tempo real, a qualidade do produto, a partir de sua temperatura.
No centro de P&D da Southern Methodist University, nos Estados Unidos, a pesquisadora Khengdauliu Chawang inventou um biossensor flexível, que mede mede o pH dos produtos.
Equipado com identificação por radiofrequência (RFID), pode ser usado ao longo de toda a cadeia agroalimentar.
Na Inglaterra, a empresa Mimica criou o Bump, um hidrogel sensível à temperatura, que muda a textura da etiqueta conforme o produto deteriora.
Criatividade, como se vê, não é problema. A combinação das novas tecnologias para os alimentos perecíveis e rótulos menos confusos para os não perecíveis pode representar um grande passo contra o desperdício — em defesa da segurança alimentar global.
ATENÇÃO: Com essa reportagem, o NeoFeed não pretende incentivar o consumo de alimentos vencidos e, sim, retratar uma discussão cada vez mais frequente no setor agroalimentar global.