Frente à escassez de terra agrícola, insegurança alimentar e emergência climática, o futuro da alimentação se constrói também na água. Doce ou salgada, dos oceanos, mares, rios ou fazendas de peixes, frutos do mar e algas - a pesca e a aquicultura representam uma nova fronteira na busca por sistemas agroalimentares mais sustentáveis, produtivos e inclusivos. Bem-vindos, à revolução azul.
Ricos em proteínas e excelentes fontes de vitaminas, minerais e gorduras poliinsaturadas, os alimentos aquáticos são peças-chave para atender às necessidades nutricionais de uma população em franca expansão. Para tanto, a produção global deve aumentar entre 35% e 40% até 2030, indicam as projeções da FAO, a agência da ONU para agricultura e alimentação.
Esse movimento, porém, deve acontecer por meio de práticas ambiental, social e economicamente responsáveis, reduzindo os impactos sobre os ecossistemas. E, nesse sentido, a aquicultura sustentável acena com a promessa de um futuro mais próspero e limpo.
Os animais e algas aquáticos criados em cativeiro são o segmento da indústria alimentícia que mais cresce no planeta, apontam os analistas do Fórum Econômico Mundial (WEF, na sigla em inglês). Das 178 milhões de toneladas produzidas em 2020, 122,6 milhões vieram de fazendas aquícolas – aumento de 5,7% sobre 2018, lê-se no relatório The State of World Fisheries and Aquaculture – Towards Blue Transformation, elaborado pela FAO e divulgado no ano passado.
Ainda em 2023, nas previsões da FAO e da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), os alimentos provenientes da aquicultura devem ultrapassar em vendas os obtidos por meio da pesca. No Brasil, essa virada já aconteceu, diz Francisco Medeiros, presidente da Associação Brasileira de Piscicultura (PeixeBR).
Por aqui, a produção apenas da psicultura aumentou 4,7%, em 2021, chegando a 841 mil toneladas e somando R$ 8 bilhões. “Mas temos um grande potencial a explorar”, afirma Medeiros. O consumo no país ainda é baixo; cinco quilos anuais, per capita –o equivalente a um quarto da média mundial.
A chegada de novos players ao setor
A maré está tão favorável para a aquicultura que o setor vem atraindo grandes players. É o caso da JBS. Dois anos atrás, a companhia brasileira comprou por R$ 2,1 bilhões, a Huon Aquaculture, segunda maior produtora de salmão da Austrália.
“A ideia é aproveitar a expertise da JBS, sua atuação em diferentes mercados e conhecimento nos demais negócios globais, para implementar no setor de peixes e frutos do mar, a mesma estratégia bem-sucedida liderada pela empresa nos segmentos de bovinos, aves e suínos”, diz Henrique Batista, CEO da Huon, ao NeoFeed. Neto de José Batista Sobrinho, fundador da JBS, o executivo assumiu as operações da companhia australiana em julho de 2022.
“Com esta aquisição, a JBS não apenas ampliou o seu portfólio de produtos, mas também tornou a aquicultura uma nova plataforma de negócios. A JBS adquiriu não apenas o know-how da empresa, mas também entrou em um mercado com potencial para crescimento sustentável”, completa Batista.
As credenciais ambientais e de sustentabilidade da Huon chamaram a atenção da JBS. Fundada em 1986, nos últimos anos, a companhia aquícola investiu cerca de US$ 350 milhões em infraestrutura operacional de ponta e em práticas sustentáveis inovadoras. A empresa, por exemplo, é pioneira na produção de salmão offshore, em fazendas localizadas em áreas com maior exposição a correntes marítimas e ondas.
“Isso permite uma produção mais sustentável e maior bem-estar animal, como maior oxigenação da água e melhor dispersão de resíduos gerados pelos animais”, explica Batista. A empresa é a única do setor de aquicultura na Austrália certificada pela Royal Society for the Prevention of Cruelty to Animals (RSPCA), ONG inglesa de defesa dos animais.
Em 2014, a Huon foi a primeira do mundo a adotar um painel de sustentabilidade, para a publicação de dados não apenas sobre o desempenho da empresa, investimentos em P&D, mas também sobre a vida selvagem e o meio ambiente nas águas com as quais a companhia interage, conta o executivo.
O pioneirismo da australiana também está no berçário de crescimento de alevinos (peixes juvenis, recém-eclodidos dos ovos), monitoramento e alimentação dos animais controlados remotamente e gaiolas marinhas com maior proteção contra predadores.
Conforme as boas práticas de sustentabilidade, a economia circular é uma prioridade na companhia. O resíduo de processamento é transformado em ração para pets. “Outros resíduos orgânicos, incluindo água de reuso, são reutilizados em operações agrícolas”, diz Batista. “A Huon também recicla uma produção significativa de resíduos não-orgânicos. E, recentemente, adotou embalagens totalmente recicláveis para todos os seus produtos.”
Sustentável e escalável: o sucesso da tilápia brasileira
Se no mundo, o salmão está entre os peixes preferidos; no Brasil, o posto cabe à tilápia. Conhecido como “frango do mar”, por seus preços mais acessíveis, o pescado registrou um aumento de quase 10% na produção de 2021, chegando a 535 mil toneladas – 63,5% do total da psicultura, informa o Anuário 2022, da PeixeBR. A tilápia respondeu por 88% das exportações brasileiras. Com essa marca, o país chega à quarta posição no ranking global de exportadores do peixe.
Um exemplo da efervescência do setor? O aporte de € 10 milhões na Tilabras, em outubro de 2022, pelo fundo inglês de impacto Ocean 14 Capital, focado na economia azul. Fundada em 2015, por Nicolas Landolt, a Tilabras é uma das maiores fazendas de tilápia do mundo.
Trinta viveiros espalham-se pelo rio Paraná, na divisa entre Mato Grosso do Sul e São Paulo. Criados em tanques de rede flutuantes de até 20 metros de diâmetro e seis, de profundidade, os peixes nadam no fluxo natural da água e são alimentados com ração produzida especialmente para a empresa, a partir de grãos, de alta digestibilidade. Em um ambiente de stress zero, as tilápias crescem sadias e robustas.
“Com o investimento, a intenção é fazer tudo na fazenda, menos ração”, conta Landolt. A Tilabras começa a desenvolver suas próprias linhagens genéticas, está terminando a construção de um frigorífico para o processamento da tilápia e vai assumir a distribuição dos produtos, com uma frota própria de caminhões. Das ovas à chegada do peixe na mesa dos consumidores; a empresa passa a ter controle total sobre a cadeia de tilápia.
Landolt espera fechar 2023 com um faturamento de R$ 100 milhões. No ano passado, esses valores giraram em torno de R$ 60 milhões e R$ 70 milhões. Uma vez que o frigorífico entre em funcionamento, a Tilabras conseguirá comercializar filé de tilápia. E isso faz uma baita diferença. Um quilo de posta sai por R$ 37; contra os R$ 9, pagos pela mesma quantidade do peixe inteiro.
O entusiasmo global em torno aquicultura sustentável é compreensível. Além das oportunidades de negócios, a prática pode aliviar a tensão sobre o campo, os oceanos, mares e rios. A produção de proteínas de animais aquáticos tende a ser mais “eco friendly” do que a de terrestres.
Por características que vão desde o tipo e quantidade de ração às necessidades fisiológicas dos animais, a pegada ecológica da criação de peixes em cativeiro equivale a um sétimo da suínos, bovinos e aves, revela estudo da Universidade de Massachusetts, nos Estados Unidos.
Para crescer um quilo de massa corporal de salmão, com a aquicultura, por exemplo, é preciso 1,1 quilo de ração, em média, aponta o estudo americano. A mesma quantidade de frango de corte exige 600 gramas a mais. De porco, quase três quilos; e de gado de confinamento, cerca de sete.
“Além de melhorar a distribuição dos recursos que são retirados e evitar desperdícios, a prática pode contribuir para minimizar a pressão de pesca em estoques naturais e permitir a restauração de espécies sob ameaça”, explica Ronaldo Christofoletti, professor do Imstituto do Mar, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), integrante do Grupo Assessor de Comunicação para a Década do Oceano, da Unesco, e da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza (Recn), iniciativa do Grupo Boticário.
Quase um terço de todos os estoques pesqueiros globais monitorados são super explorados e quase dois terços estão sendo pescados com o rendimento máximo sustentável. Se mantido o ritmo atual, alertam os cientistas da FAO, os ecossistemas marinhos, em dez anos, podem colapsar.
Os oceanos cobrem 71% da superfície da Terra e garantem a sobrevivência de 66% da vida do planeta. Grandes sequestradores de CO2, absorvem 25% do total dos gases de efeito estufa lançados na atmosfera. Protegê-los garante a saúde do planeta –e dos negócios, inclusive os da aquicultura. Sem a economia azul será difícil avançar rumo ao futuro verde.
*Correção: a reportagem foi atualizada com a imagem correta. Por um erro do NeoFeed, a imagem que estava anteriormente estava errada.