A América Latina é descrita como uma “intrigante dicotomia”. De um lado, a maior biodiversidade do planeta e um sistema agrícola altamente avançado e produtivo – “afinal, é a casa do Brasil, o quarto maior produtor de alimentos e o segundo maior exportador do mundo”.
Do outro, economias em desenvolvimento, instabilidade política, degradação ambiental desenfreada, desigualdades e milhões de pessoas passando fome.
Assim, os analistas de dois dos principais fundos de venture capital do ecossistema agroalimentar global, o americano AgFunder e o brasileiro SP Ventures, abrem o relatório Latin America AgriFoodTech Investment Report 2023. Divulgado recentemente, o levantamento é o primeiro a traçar uma retrato dos financiamentos de VC na região.
Apesar de classificada como um “viveiro de oportunidades em inovação”, a América Latina, historicamente, nunca despertou grande interesse dos capitalistas de risco.
Do investimento global em tecnologia agroalimentar, as startups latino-americanas ficaram com apenas 5% em 2022 (o equivalente a US$ 1,7 bilhão). Esse dinheiro foi levantado por 153 empresas, em 176 negócios.
O volume de aportes registra uma queda de 39% em relação a 2021, um dos melhores períodos para o setor, aqui e no mundo. Se comparado a 2020, os financiamentos do ano passado aumentaram 183%. Desde 2018, o total é de US$ 7,3 bilhões.
Liderança brasileira
O Brasil foi, de longe, o país mais investido da América Latina, com 48,9% de todos os cheques destinados à região – US$ 765 milhões, em 86 rodadas. Apesar de seu ecossistema menos diverso, a Colômbia aparece em segundo lugar, puxada pelo aporte de US$ 112 milhões na gigante do delivery Rappi.
O relatório divide os investimentos em 14 categorias, responsáveis por cobrir todo o sistema agroalimentar, da lavoura à mesa. É interessante notar, como diz Louisa Burwood-Taylor, líder de notícias e pesquisas da AgFunder, que o financiamento de VC na América Latina acontece sobretudo nos extremos, com os maiores valores indo para duas categorias em polos opostos da cadeia – “marketplaces & fintech” e “egrocery”.
Ao México, o maior cheque
Delas, a vertical de mercados online foi a que fez os olhos dos capitalistas de risco brilhar em 2022. Eles assinaram cheques no valor total de US$ 404 milhões. E o mexicano Jüsto levou US$ 152 milhões desse total, no maior aporte feito na região.
Das seis empresas mais investidas do segmento, duas são brasileiras: Evino (2º lugar, com US$ 128,5 milhões) e Trela (3º, com US$ 25 milhões).
No setor das plataformas de negociação de comodities, leasing de equipamentos e serviços financeiros para agricultores, o Brasil reina. Fundada em 2020, em São Paulo, Agrolend, de empréstimos agrícolas, ficou com o maior investimento. Dos US$ 191 milhões destinados ao segmento, US$ 96,2 milhões couberam à empresa paulista.
Dos seis maiores financiamentos, cinco foram para empresas “verde-amarelo”. Além da Agrolend, Terra Magna (US$ 40 milhões), Seedz (US$ 16,5 milhões), Traive (US$ 10 milhões) e Grão Direto (US$ 7,9 milhões).
Os negócios da conservação
Por se tratar da região com a maior biodiversidade do planeta, os idealizadores do Latin America AgriFoodTech Investment Report 2023 incluíram no levantamento a categoria “conservação”, o que, normalmente, não acontece em levantamentos feitos em outras regiões do mundo.
A executiva do AgFunder é dura nas críticas às políticas ambientais do Brasil, classificadas por ela como “infames; embora o novo governo tenha lançado recentemente uma série de iniciativas para interromper o desmatamento até 2030”.
“Apesar disso - ou talvez por causa disso - as startups brasileiras lideram quando se trata de tecnologias de conservação”, explica ela. No mercado de carbono, as mais amadurecidas são a Re.green (US$ 76,8 milhões) e a Carbonext (US$ 40 milhões). Em estágios iniciais, aparecem Mombak (US$ 20 milhões) e Moss (US$ 10 milhões).
Falta ciência
Em termos de diversificação do ecossistema de inovação agroalimentar, nós dividimos a primazia com o Chile. Sediamos empresas dedicadas às mais diversas áreas da inovação agroalimentar - da biotecnologia ao comércio eletrônico, das proteínas alternativas aos biomateriais.
O México, segundo os analistas, está ampliando seu escopo. Já a Argentina é conhecida por exportar seus fundadores para outras partes do mundo e expandir rapidamente suas empresas, para além das fronteiras do país.
Os especialistas, porém, sentem falta de mais startups focadas no desenvolvimento de soluções baseadas em deep tech, aquelas empresas que trabalham com tecnologia, inovação e ciência. “Apenas US$ 41 milhões na categoria ‘biotech’ e US$ 2 milhões para ‘farm robotics and automation’ são dois sinais decepcionantes”, lê-se no relatório.
Apesar disso, os analistas da AgFunder e da SP ventures estão otimistas. Aos poucos, os investidores compreendem o papel da América Latina no sistema agroalimentar e no equilíbrio ambiental globais. Que financiar a inovação por aqui é uma forma de não só garantir a produção de alimentos para o mundo todo como também garantir a saúde do planeta – e da humanidade.