Para garantir a segurança alimentar de uma população de quase 10 bilhões de pessoas, em 2050, a produção agropecuária deve crescer 70%. Chegar lá sem degradar o meio ambiente (já depauperado) é, por si só, um enorme desafio, mas a busca por um futuro sustentável, farto e inclusivo exige mais.
Faz-se urgente também desenvolver sistemas tolerantes ao aquecimento global. A transição rumo a um futuro de campos saudáveis e lavouras robustas está intrinsecamente associada aos avanços da chamada agricultura climaticamente inteligente (CSA, na sigla em inglês) – ou agricultura resiliente ao clima.
Ainda que os investimentos nas agrifoodtech focadas na crise climática estejam aquém do necessário, os fundos de venture capital começam a olhar com mais atenção para o setor. Em um dos lances mais recentes do novo movimento, a startup francesa Amatera acaba de levantar US$ 1,6 milhão.
Fundada em 2022, em Paris, pelo engenheiro e CEO Omar Dekkiche e pela PhD em biologia molecular vegetal e CTO Lucie Kriegshauser, a empresa está desenvolvendo duas variedades inéditas de café programadas para aguentar as ondas de calor extremo - e todos os eventos decorrentes delas, como o aumento na incidência de doenças e pragas.
A rodada foi liderada pela PINC, braço de venture capital da gigante finlandesa de comidas e bebidas Paulig. Também participaram do financiamento Exceptional Ventures, Mudcake, Joyance Partners e Agfunder. Entre os investidores individuais está o empreendedor francês Nicolas Morin-Forest, cofundador e CEO da Gourmey, empresa de carne cultivada.
O café é uma das culturas mais suscetíveis aos efeitos do aquecimento global e, ao mesmo tempo, um dos cultivos mais prejudiciais ao meio ambiente. Mantidas as práticas atuais, até 2050, metade de toda a área usada hoje pela cafeicultura pode virar terra arrasada.
A equipe de cientistas da Amatera não usa a edição gênica tampouco a transgenia no desenvolvimento de seus cafés. Dessa forma, Dekkiche e Lucie conseguem agilizar a aprovação de seus produtos pelas agências regulatórias – o que torna o negócio ainda mais atraente para o capital de risco.
Como explica a bióloga em comunicado, a startup trabalha com cultura de células vegetais. Por meio de processos físicos e químicos, é possível acelerar variações genéticas já programadas pela natureza que, deixadas a seu próprio curso, demorariam décadas para “frutificar”. A Amatera dá uma “forcinha” para o processo de evolução natural das plantas.
Os estudos ainda estão restritos ao laboratórios da empresa na Île de France e assim devem seguir ao longo de 2024. Confirmado o sucesso obtido até agora, a primeira produção dos cafés da Amatera deve ser lançada em 2027. Lucie e Dekkiche pretendem testar o método também com cacau, banana e uva.
Outro exemplo do interesse dos fundos de venture capital pela agricultura resiliente ao clima? Os quase US$ 4 milhões arrecadados pela canadense Alora, desde seu lançamento em 2019. Ao contrário da Amatera, a empresa usa a edição gênica para cultivar arroz mais resistente à salinidade.
Batizada CRISPR e popularmente conhecida como “tesoura genética”, a ferramenta foi desenvolvida em 2012 e permite a edição de trechos específicos do DNA das plantas. É diferente das técnicas de melhoramento tradicionais pois trabalha apenas com os genes de uma mesma espécie; não há mistura de material genético de organismos diferentes.
Graças à tecnologia, já foi possível desenvolver banana resistente a ventos fortes, tufões e tempestades; milho tolerante à seca e tomate adaptado às altas temperaturas.
Na agtech sueca OlsAro, o objetivo é desenvolver trigo tolerante ao sal. Os cientistas usam inteligência artificial para identificar os genes que, ativados via edição gênica, permitem cultivar o cereal até em água do mar.
Fundada em 2013, em Gotemburgo, pelos biólogos moleculares Henrik Aronsson e Olof Olsson, a a startup já arrecadou US$ 680 milhões, como conta Elén Faxö, CEO da agtech, à plataforma do fundo americano Agfunder. Estudos conduzidos com as sementes da OlsAro no Paquistão, Sérvia e Quênia indicam que o time de Gotemburgo está no caminho certo.
Castigadas pelo mau uso, as terras aráveis estão em processo de desertificação e, consequentemente, de salinização. Além disso, por causa do aquecimento global, o nível do mar começa a subir, contaminando os lençóis freáticos e salgando o solo.
O mundo já perdeu 6% das terras aráveis para o sal. Cerca de dois quilômetros quadrados de solo são inutilizados todos os dias, na contas da FAO, a agência da Organização das Nações Unidas (ONU) para agricultura e alimentação.