Muito se fala sobre os benefícios da cannabis sativa na medicina. Mas, vencidos os obstáculos regulatórios e o preconceito, ainda vigentes em muitos países, o cânhamo pode ter também um papel decisivo no futuro da alimentação.
Rica em proteínas, aminoácidos essenciais, vitaminas, minerais, ácidos graxos e fibras, a planta é considerada um superingrediente; tanto por seu valor nutricional como pelo baixo impacto de seu cultivo sobre o meio ambiente. Duas características mais do que bem-vindas em tempos de crise climática e insegurança alimentar global.
“O cânhamo tem tudo para se transformar em uma commodity, como a soja e o milho”, diz Thiago Ermano, presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Cannabis (Abicann), em conversa com o NeoFeed.
Nas nações onde seu uso é liberado, a cannabis está sendo usado pelas indústrias de proteínas alternativas, suplementos alimentares e bebidas.
Nas contas da consultoria Data Bridge Market Research, o mercado global deve evoluir a uma taxa de crescimento anual composta de 10,4%, chegando a quase US$ 12 bilhões, em 2029. No ano passado, movimentou US$ 5 bilhões.
Também em 2022 o consumo mundial de cânhamo como ingrediente cresceu quase duas vezes mais rápido do que o de alimentos enriquecidos com chia e linhaça, cujas propriedades e aplicações se assemelham às da cannabis.
Rumo à Europa
Frente à promessa de tamanha prosperidade, o ecossistema está em ebulição. A foodtech Planet Based Foods (PBF) lançou recentemente um sorvete feito com leite de cânhamo – um produto que sozinho deve girar US$ 988 milhões, em 2029, no mundo.
O produto foi desenvolvido pelo cientista de alimentos Robert Davi, cofundador e CIO da empresa. Estão ao lado dele nos negócios, seu filho Braelyn, atual CEO, e Ted Cash, veterano do setor de restaurantes e, hoje, COO da PBF.
Em abril passado, a foodtech lançou uma subsidiária na Inglaterra. De Londres, os Travis e Cash querem conquistar a Europa. Listada na bolsa canadense desde janeiro de 2022, a empresa foi fundada em 2018, em San Diego, na Califórnia.
Mais recentemente, a canadense Manitoba Harvest, pioneira na produção de alimentos à base de cânhamo, firmou parceria com a Whole Foods, para levar suas farinhas e óleos para uma das maiores redes de alimentos naturais dos Estados Unidos.
Criada em 1998, por Mike Fata, coach de saúde holística, os produtos desenvolvidos pela foodtech já se faz presente em grandes cadeias, como a do Walmart. A Manitoba Harvest foi adquirida pela Tilray Brands, fabricante de cannabis medicinal, em 2019, por US$ 419 milhões.
No Brasil, a venda e o consumo de produtos alimentícios feitos ou enriquecidos com cannabis ainda são proibidos. Mas, segundo Ermano, da Abicann, já estão em processo de regulação no Ministério da Agricultura.
Nos cálculos do presidente da associação, os alimentos e bebidas à base de cânhamo podem injetar de US$ 6 bilhões a US$ 7,5 bilhões, por ano, na economia brasileira.
Sem viagens psicodélicas
Em alguns países mais do que em outros, a cannabis ainda carrega o estigma de “erva maldita”. Mas, graças ao sucesso dos tratamentos médicos com a planta, o preconceito vem, aos poucos, diminuindo. Quando se fala no uso do cânhamo para a alimentação, muita gente ainda associa o consumo aos “brigaderonha” e “space cookies”, aquelas receitas feitas “para dar barato”.
Os conceitos de maconha e cânhamo são frequentemente usados de forma intercambiável; mas está errado. Ambos pertencem à mesma espécie, mas a maconha tem concentrações maiores de THC, o tetraidrocanabinol, o composto psicoativo da planta.
Com até 1% da substância, segundo os estudos, a cannabis não tem efeito alucinógeno. Por isso, nos países onde o plantio é permitido, seja para uso medicinal ou industrial, a cannabis contém muito pouco THC.
Como nos Estados Unidos, Canadá e Paraguai, aqui, no Brasil, a planta tem de ter menos 0,3% do tetraidrocanabinol. Na Inglaterra, até 0,2%. Na Itália, menos de 0,6%. Ou seja, tomar um sorvete feito de cânhamo ou salpicar um punhado de farinha de cannabis na salada não vai proporcionar a ninguém nenhuma viagem psicodélica.
Raízes longas e robustas
Além do alto valor nutricional do cânhamo, o cultivo da planta pode ajudar na recuperação do meio ambiente, lembra Ermano, da Abicann. No Brasil, 70% das terras agrícolas estão aptas ao plantio. A cannabis só tem dificuldade para florescer em regiões muito quentes e úmidas.
As lavouras consomem menos recursos naturais do que as plantações de culturas convencionais. A água, por exemplo. Metro quadrado por metro quadrado, o cânhamo usa um terço da água utilizada pela soja. “E a cannabis não exige nenhum agrotóxico”, afirma Ermano.
Como as raízes da cannabis sativa são longas e robustas, vão até 70 centímetros de profundidade, muito mais fundo do que as lavouras tradicionais, o cânhamo, explica o presidente da Abicann, traz os nutrientes do solo para mais perto da superfície.
Quando cultivado em sistema de consórcio com outras culturas, portanto, acaba por aumentar a produtividade de toda a plantação. Tem mais. A cannabis sativa é também exímia no sequestro de carbono.