Cidadão do mundo, Alexandre Allard nasceu nos Estados Unidos, morou na Costa do Marfim e passou grande parte da vida na França. Depois de dar a volta ao mundo em viagens, garante que o Brasil, onde mora há mais de uma década, é onde se sente em casa.
O empreendedor ficou conhecido pela criação e venda da companhia Consodata, nos anos 90, empresa que realizava os primeiros bancos de dados compartilhados no mundo.
Antes dos 30 anos, já tinha acumulado fortuna suficiente para parar de trabalhar, mas mudou o foco e fez planos mais ambiciosos: acabar com a pobreza no mundo.
Criou um sistema de microcrédito que poderia ajudar quem vive abaixo da linha da pobreza a trabalhar com sua inteligência de dados e faturar por meio de vendas direcionadas ao desejo de cada consumidor.
“Não acredito que precisem existir pobres para haver ricos. Tem riqueza para todos”, ele diz, com profundo interesse em se unir a pessoas que, como ele, têm o propósito de conexão com a humanidade muito claro.
Uma década depois, um novo insight direcionou a ambição para o Brasil, quando percebeu que nossa grande riqueza é a natureza. A questão era fazer com que os brasileiros entendessem isso e passassem a preservar as florestas.
Hoje, trabalha com o conceito de regeneração — é dele o projeto que transformou um hospital abandonado na região da Paulista nos cobiçadíssimos Cidade Matarazzo e hotel Rosewood.
Mesmo com tantas realizações, garante que não vê o sucesso dessa forma e quer fazer mais. Já tem planos no Rio e em Salvador e falou sobre isso nesse diálogo repleto de propósito, na sua penthouse no Edifício Mata Atlântica, que abriga o Rosewood, na capital paulista.
Na conversa a seguir, em que foi entrevistado pelo CEO da Vivo, Christian Gebara, para a revista Velvet e que foi cedida ao NeoFeed, Allard conta toda sua jornada e o que virá pela frente. Acompanhe:
Alex, você montou várias empresas no começo da carreira e foi duas vezes reconhecido como um dos maiores novos empreendedores do mundo. De onde veio esse tino para os negócios?
Não fui feito para obedecer às regras. O mundo me concebeu de uma maneira diferente e, cada vez que há uma regra, meu objetivo número um é quebrá-la. Isso definiu um pouco a minha vida. Esse jeito de ser não cabe em grandes corporações. Então, quando eu era muito jovem, percebi que era melhor trabalhar para mim mesmo.
Essa inovação se refletiu nas ideias de empresas que você teve, que eram ousadas para a época. De onde vinha esse interesse por esse tipo de negócio?
Eu comecei a vender flores na rua, na Costa do Marfim, na África, aos 11 anos de idade. Criei um tipo de sistema em que as pessoas tinham que se comprometer a comprar as flores de mim. Eu queria comprar uma bicicleta e percebi que o mercado queria comprar flores, mas não havia oferta. Foi sempre assim que minha vida foi decidida. Encontrando esse tipo de buraco. Mais tarde, em 1986, comprei meu primeiro computador e descobri um mundo incrível em que não dependia tanto dos outros, e poderia fazer com a máquina o trabalho de 10 ou 20 pessoas. Passei a trabalhar para uma revista de publicidade e rapidamente as agências me identificaram. Comecei a criar um sistema de fidelização muito inteligente e virei geek para fazer tudo que eles não gostavam de fazer. Comecei a cuidar de dados e criei esse mundo incrível, em 1989.
Mas você tinha várias outras empresas. O que aconteceu depois disso?
Eu comecei a coletar dados de agências de publicidade. Cuidava das grandes marcas e de todos os dados. Um dia, um rapaz me procurou dizendo que estava vendendo uma pequena empresa — era a Cisco. Foi assim que desenvolvi para eles protocolos, que se transformaram em databases conectadas. Em 1992, me diziam que eu precisava explicar o que foi criado lá. Não era marketing direto, era mais focado em interação, mas não tinha um nome. Foi assim que criamos o termo CRM (costumer relationship management, usado até hoje). Criei a primeira plataforma CRM do mundo. Ninguém acreditava que iria funcionar, muito menos queria colocar dinheiro nisso, mas falei que eu iria criar para mim, vender para as empresas e inventar a primeira database na Europa, que cresceu em vários países. Seis anos depois, no meio dos anos 90, eu já tinha 1,4 bilhão de indivíduos dentro dessa base.
“Um dia, um rapaz me procurou dizendo que estava vendendo uma pequena empresa — era a Cisco”
E no meio desse sucesso todo, você vendeu para a Telecom Itália…
Na época, eu achava que era importante mudar a maneira de tratar dados. Eu tinha razão. Vendi porque, à época, estavam me descrevendo como o Big Brother da Europa [em menção ao livro 1984, de George Orwell]. Eu tinha um volume de dados inacreditável. Fazia conferências em salas com 2 mil pessoas e garantia que ia descobrir a identidade da esposa de um deles apenas fazendo algumas perguntas. Imagine isso nos anos 90. Era mágico e todo mundo achava uma loucura. Acessava dados em uma velocidade muito grande. Nesse momento, eu percebi que o futuro seria as empresas de telefonia móvel. Aprendi muito sobre o futuro do mundo com esse pensamento. Mas eu achava que os dados precisavam ser protegidos — a empresa não pode ter direito de ficar com as informações dos consumidores. É necessário que o cliente tenha privacidade e eu já dizia isso em 1995, na França. E, se decidir compartilhar, precisa ser remunerado por isso. Todo mundo queria comprar o sistema que fazíamos.
Você vendeu por 500 milhões de euros, aos 31 anos. Foi aí que decidiu viver um pouco a vida? Você ficou cansado?
Eu nunca parei. Comecei vendendo flores na rua. Quando você não tem nada, o sucesso material é muito importante. Eu tinha muito dinheiro e o mundo nem era concebido para pessoas com tanto dinheiro. Quando sua capacidade financeira supera tudo que se pode comprar, você não precisa mais desse dinheiro assim. Eu trabalhava sete dias por semana desde muito novo e decidi que, se não ia trabalhar, ia morar em Roma, uma cidade feita para não se trabalhar. Na verdade, vendi tudo por causa da minha mulher.
Então, com a situação financeira mais confortável, sua mulher não via mais sentido em você ficar longe da família? Como foi isso?
Fiz uma promessa de que iria me aposentar quando fizesse 30 anos. Porque estou com ela desde os 18, e nessa época chegava às 2 da manhã e dormia duas horas para sair de novo. No aniversário de 30 anos dela, ela disse que o que queria era que eu cumprisse minha promessa. No dia seguinte, de manhã, liguei para quem trabalhava comigo e disse: “amigos, vamos vender tudo”. Eles queriam saber se eu estava louco, mas eu disse que queria pagar uma promessa que tinha feito à minha mulher. Eu estava cansado, de qualquer maneira. E assim a vida mudou
"Percebi que a estupidez da humanidade é um problema organizacional. Não existe isso de precisar ter pobres para ter ricos, tem riqueza para todo mundo"
Mudou sua vida e devem também ter mudado seus interesses…
Foi em 1998. Eu percebi que a estupidez da humanidade é um problema organizacional. Não existe isso de precisar ter pobres para ter ricos, tem riqueza para todo mundo. Quando pensei que existe 1 bilhão de pessoas que vivem com menos de um dólar e, desses, 250 milhões são capazes de trabalhar, decidi que poderia ajudá-los com microcrédito e meu know-how. Eu queria, assim, acabar com a pobreza no mundo. Vendi tudo e foquei nisso. Tem um pouco a ver com a culpa de ter ganhado tanto dinheiro e não se sentir merecedor. Eu sentia que precisava transformar essa culpa em algo legal para o planeta.
E como você foi parar no mundo da moda, comprando grifes de luxo, como a Balmain?
Por muitos fatores. Em 1994, comecei a desenvolver o primeiro modelo de “aprendiz”, um embrião de inteligência artificial. Em 2000, saí com a certeza de que a tecnologia ia ajudar a humanidade a ser mais humana. Ela ia mudar o business, mas eu acreditava no poder das mãos, do artesanato, do que é nosso. Então, passei usar a database para acabar com a pobreza e valorizar o artesanal. Fiquei apaixonado! Isso me abriu um mundo inacreditável: pintores, escultores, estilistas. No fim do dia, eu percebia que os meus amigos de verdade eram os criativos, apesar de eu ter vindo do mundo mais exato, da tecnologia. Como eu tinha tempo livre, passei a apoiar artistas. A grife surgiu após algumas idas e vindas, muito por conta dessa minha paixão pelo artesanal.
E como foi trabalhar com esse tipo de negócio?
Fizemos um conceito inacreditável no mundo da moda. Criei uma empresa para fazer roupas de luxo sexy, porque isso não existia antes. O rico dos anos 2000 era mais clássico. Mas havia uma geração jovem enriquecendo. A mulher do futuro para mim é uma guerreira, um tipo de Joana d’Arc. Cortei os vestidos longos, fiz vestidos curtos, ganhei dinheiro economizando tecido e vendi as peças ainda mais caras!
Como saiu de uma grife de luxo na Europa e veio parar no Brasil?
São muitas razões. Eu acreditava que estava resolvendo a questão da pobreza, mas em Mali estavam acabando com as florestas. Eu estava resolvendo a questão do ser humano, mas vendo as pessoas destruírem o planeta. E fiquei muito mal com isso. E me lembrei de um passeio que fiz a uma ilha em Angra dos Reis. Não tem como explicar para os brasileiros o quanto essa riqueza da natureza é incrível. A imagem não me saía da cabeça quando percebi como o desmatamento em Mali estava avançado. Se havia esse chamado da floresta, eu achava que deveria ouvir o chamado no Brasil e fazer algo diferente com construções antigas.
Você já havia feito isso na Europa, no hotel Le Royal Monceau, em Paris...
Sim, eu gostava de pegar coisas antigas e transformar. Meio arquiteto. Eu queria fazer um projeto para dar confiança ao Brasil sobre o poder incrível que tem a natureza, mas pensava que os brasileiros não gostavam do Brasil. Acho que esse país é o mais importante do planeta com as florestas que existem aqui e todo o ecossistema. Tenho essa certeza muito forte em mim. Mas o meu maior inimigo era o brasileiro, que não acreditava nisso. Precisava construir algo que fizesse o brasileiro acreditar no seu potencial. Isso me levou a São Paulo pela primeira vez, em 2005. Eu queria criar um templo para que o brasileiro acreditasse em seu potencial. A equipe visitou o prédio onde era o banco Real, na Paulista, e nas fotos feitas lá de cima, do heliponto, vi o local onde seria o Rosewood. Nem dormi à noite e vim para o Brasil. Decidi que seria ali, peguei o prédio abandonado com problemas jurídicos e transformei em um local valioso da América Latina. Só há um caminho para mim, que se chama regenerar. Todo mundo achou que eu não ia conseguir, mas eu tenho pena de que vocês não entendam o valor do seu país.
“Precisava construir algo que fizesse o brasileiro acreditar no seu potencial”
É uma missão difícil. Você nunca pensou em desistir?
Muitas vezes, antes de dormir. Mas a boa notícia é que eu acordo e já sumiu esse pensamento.
Você tem uma visão integrada muito ampla. Começou aqui, partiu para o Parque Mário Covas e está pensando em Salvador e Rio de Janeiro. Qual sua ambição hoje?
Tudo está interligado. Mas nem pensei em fazer isso quando comecei. Meu objetivo era criar um templo para mudar a cidade. Mas, fazendo isso, descobri que há um modelo de regeneração de metrópole. Estava criando uma sabedoria única de transformar um lugar desprezado no mais importante e desejado. Isso define a humanidade. Precisamos regenerar os seres humanos para fazer com que entendam que locais abandonados na cidade têm potencial e que é importante ter as florestas preservadas. Essa é a porta para o futuro. Regenerar não tem a ver com sustentabilidade — acho esse conceito errado, porque se a gente só compensar o mal que fez para o planeta vai apenas zerar. Nós temos uma missão de cuidar da mãe natureza. É regenerar e criar valor. A gente precisa pensar de maneira sistêmica em que os valores de uma empresa são medidos nos efeitos que ela tem para a sociedade e não no lucro que ela gera. Esse equilíbrio é uma coisa totalmente possível.
“Precisamos regenerar os seres humanos para fazer com que entendam que locais abandonados na cidade têm potencial e que é importante ter as florestas preservadas”
E isso acontece na Cidade Matarazzo...
Sim, porque estamos agregando valores como inclusão e paixão pelo legado da cultura. São fatores de desejo. Um lugar que ninguém queria olhar há 20 anos virou um lugar que não tem mais como comportar clientes. Só apliquei as leis da natureza: se encantar com a beleza, viciar as pessoas nisso. A natureza é um sistema aditivo. O açúcar que está nas frutas é viciante. Eu uso essas regras para que a sociedade entenda que isso é o modelo para nosso futuro, sem excluir ninguém, sem acreditar que quem trabalha mais merece mais. Inclusão é uma necessidade. Quando se reequilibra tudo, você tem uma sociedade mais justa.
Isso tem a ver com usar materiais locais, como as pedras brasileiras do Rosewood?
Para regenerar, eu tinha que usar material daqui. Não se coloca tulipa em jardins brasileiros porque ela não sobrevive. A base da regeneração é usar produtos locais e valorizar a cultura do lugar. Queria transferir essa beleza para a rua também e expandir. Queria criar uma experiência em que a rua fosse um lugar encantador com um modelo financeiro que funcionasse com pequenos agricultores, por exemplo. Aqui no Brasil, eu tive que pagar por tudo.
E isso se expandiu para o Rio de Janeiro. O que você pretende fazer lá?
No Rio, o pesadelo começou em 1734, no Cais do Valongo, quando trouxeram pessoas de verdade para serem escravizadas. Ninguém pensou que o modelo de vida deles estava baseado na exploração de seres humanos na pior condição do planeta. Comprei uma área portuária onde tem a Pedra do Sal, onde nasceu o samba, entre dois aeroportos, bem localizada. A cidade está em uma morte lenta e precisamos regenerá-la. Rio tem tudo: a vida, a floresta, a beleza do corpo.
“A cidade (Rio de Janeiro) está em uma morte lenta e precisamos regenerá-la. Rio tem tudo: a vida, a floresta, a beleza do corpo”
Parece que tudo está ligado ao turismo e às artes. O mundo da tecnologia ficou para trás?
Conheço as pessoas da tecnologia há muito tempo e não gosto do que elas se tornaram. Eles não têm consciência nenhuma. Só visam lucro. O mundo que eu imaginei há 25 anos está acontecendo, mas sem nenhuma consciência. O Rio precisa ser o lugar para inovação com consciência.
E o que você acha que pode atrair mais as pessoas para o Rio de Janeiro?
No Rio, você vive com um terço do dinheiro que precisaria em São Francisco. Eu quero criar uma cidade do futuro totalmente regenerativa com geração de trabalho para as comunidades ao redor. O Rio faleceu do próprio orgulho. Em Salvador, há um ecossistema tão gigante que podemos oferecer para o turista um sistema que valorize a sabedoria local. Do ponto de vista da cultura, Salvador é nota 10, um lugar irresistível, mas a hotelaria é nota 1. Isso precisa ser melhorado.
Salvador é a cidade mais negra fora da África. Isso também é simbólico.
O ser humano tem que se reconciliar com a negritude. O cliente que entra lá, se é branco, vai sair de lá lamentando o fato de não ser negro. Penso que devo criar um lugar para a diáspora negra do planeta todo. Me sinto em casa em Salvador. Na África eu sou francês. Mas até amigos negros chegam em Salvador e se sentem em casa lá. Vamos celebrar a cultura afro do mundo. Salvador tem potencial para virar uma referência em cultura afro para o mundo. É uma contribuição que quero deixar.
"Do ponto de vista da cultura, Salvador é nota 10, um lugar irresistível, mas a hotelaria é nota 1. Isso precisa ser melhorado"
Pelos seus empreendimentos, e até pela sua linguagem, a gente vê que você tem uma vertente de marketing muito boa. Mas e a sua ligação com a arte, como você desenvolveu?
Gastronomia, música, cinema, teatro, tudo é arte. Eu descobri a arte muito tarde, aos 27 anos de idade. Rapidamente percebi que amo os artistas porque a única obrigação deles é ser livre. O mais importante é que descobri como funciona o poder da arte. O artista junta a capacidade de expressão incrível com uma ligação profunda com o coração. Isso é capaz de mover qualquer ser humano. O meu trabalho com os artistas começou como aprendiz para entender como essa máquina funciona. Esse poder eu tenho usado para explicar que as pessoas precisam acreditar no poder da natureza. Arte tem muito poder.
O que você faz no tempo livre?
Viajei o mundo duas vezes, mas encontrei minha missão no Brasil, que virou minha casa. Mas minha família teve que fazer sacrifícios para eu ficar aqui. Hoje em dia, às vezes eu sinto vontade apenas de ir para Paris dormir e ver Netflix.
Você tem sensação de realização?
Zero. Primeiro porque não acabei de fazer ainda, tenho muito por fazer. E aí começou o projeto no Rio e em Salvador. Mas será mais fácil, a fórmula deu certo. Tenho o caminho. Visito aldeias indígenas e aprendi com eles que o cuidado com a natureza é primordial. Eles são seres humanos como nós, que entenderam a importância da natureza. Por isso que 90% da biodiversidade do planeta está no território deles. Espero que todos os seres humanos entendam isso.
*Christian Gebara é presidente da Vivo e diretor artístico da revista Velvet