Números que impressionam, trajetórias impactantes e contribuições decisivas para a economia nacional não têm sido suficiente para poupar o agronegócio brasileiro de avaliações simplistas e incompletas, que em muitos casos não descrevem a realidade com a essencial precisão.

São interpretações que demandam mais profundidade na análise, para fugir de pontos de vista formados superficialmente, em geral por quem observa o agro à distância, do outro lado da cerca.

Um comentário recorrente, dirigido com frequência a diferentes segmentos do agronegócio, ilustra bem a questão: o altamente competitivo agro brasileiro deixaria a desejar internamente porque exporta commodities sem beneficiamento.

Ou seja, sem o valor agregado que poderia gerar empregos de melhor qualidade e renda mais alta aqui mesmo, e não nos países que compram o que produzimos e fazem, lá, esse beneficiamento.

O café, produto que tem no Brasil o maior produtor, exportador e consumidor do planeta, exemplifica bem o quanto esse tipo de comentário passa longe de explicar o que realmente acontece. E no caso do café, as complexidades, que também existem em outros segmentos do agronegócio e explicam determinadas situações, podem surpreender.

Dados do Conselho dos Exportadores de Café (CeCafé) mostram que de cada dez xícaras consumidas no mundo, quatro são de café brasileiro. Ao mesmo tempo, vários países produtores, concorrentes diretos, processam o grão importado do Brasil, transformando-o em um produto com maior valor agregado numa segunda exportação, ainda mais lucrativa, principalmente quando envolve os chamados “cafés diferenciados”.

Perguntado sobre o tema, o diretor geral do Conselho dos Exportadores de Café (CeCafé), Marcos Antonio Matos, responde que importar café é algo que ainda “gera muitos ruídos” no Brasil. E por que importar café tem importância se o Brasil é o maior produtor do mundo? Porque essa dificuldade para importar vira obstáculo para investimentos no Brasil de multinacionais como Nespresso e Lavazza, empresas que poderiam realizar aqui o desejado beneficiamento.

A dificuldade para importar vira obstáculo para investimentos no Brasil de multinacionais como Nespresso e Lavazza, empresas que poderiam realizar aqui o desejado beneficiamento do café

O resultado dessa dificuldade, mantida por interesses políticos e setores que imaginam que a importação geraria perdas para o País, é que as tão apreciadas cápsulas de diferentes sabores e modelos, exemplo de agregação de valor ao produto bruto, acabam sendo produzidas em outros países e importadas para consumo no mercado brasileiro.

Para criar as cápsulas com cafés de diversos sabores, cada empresa torrefadora desenvolve os seus blends, ou misturas de cafés de variados tipos e origens. Não sendo possível importar cafés de outros países, não há como produzir as cápsulas no Brasil.

Oficialmente, a principal razão que impede a importação é de ordem fitossanitária. Alega-se que cafés verdes, ou crus, vindos de outros países, podem chegar aqui contaminados por pragas e espalhar doenças nas lavouras. Ignora-se, nesta alegação, que o Brasil realiza duas análises de risco para validar a entrada do produto estrangeiro sem qualquer perigo.

Vale lembrar um episódio em que o tal “ruído” se fez presente, durante a safra cafeeira de 2017/2018 em um grande estado produtor, o Espírito Santo. A falta de chuvas no estado afetou seriamente a produção da variedade conilon, um tipo de produto que, juntamente com o robusta, pertence à classe dos cafés canéforas. Com as fábricas ociosas, organizou-se um movimento para viabilizar a importação de café robusta do Vietnã.

Após vários contatos do setor produtivo com o então presidente Michel Temer e o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), liderado na época pelo ministro Blairo Maggi, o movimento obteve êxito – uma vitória pontual que permitiu, naquele momento, misturar robusta do Brasil com conilon do Vietnã.

Outras exceções foram obtidas ao longo dos anos, mas o ideal, para tornar possível esta harmonização, seria garantir para a indústria a segurança de poder importar grandes volumes como parte de uma estratégia, não apenas para enfrentar problemas climáticos como o que ocorreu no Espírito Santo.

Esse não é o único desafio para a exportação de produtos com maior valor agregado. No caso do café, tem peso significativo as barreiras tarifárias, que afetam diversos produtos do agro nacional.

Na União Europeia, que adquire 50% da produção brasileira de café, o produto verde importado é isento, facilitando o beneficiamento em países europeus. Para o café torrado e moído incide uma tarifa de 7,5%, e para o café solúvel 9%, o que prejudica a competitividade do produto industrializado brasileiro.

Internamente, a indústria do café, como outros segmentos do agro, tem ajustado sua infraestrutura de produção para evitar obstáculos. Um deles é a bitributação do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS).

O problema ocorre quando a produção agrícola e a indústria estão em estados diferentes, que cobram diferentes alíquotas. Isso acontece no Paraná por exemplo, onde as plantas processadoras recebem grãos vindos de São Paulo ou de Minas Gerais.

Por fim, não se pode subestimar a questão da promoção da imagem do produto no exterior, algo que seria bem-vindo para boa parte do agro nacional, alvo frequente em outros países de interpretações no mínimo incompletas.

No caso do café, o parâmetro é o produto colombiano, hoje visto como o “melhor do mundo” graças a uma campanha que já dura décadas, dirigida aos principais mercados consumidores do mundo, com o camponês Juan Valdez protagonizando comerciais na TV.

O produto colombiano, hoje visto como o “melhor do mundo” graças a uma campanha que já dura décadas, dirigida aos principais mercados consumidores do mundo, leva em parte café brasileiro

Curiosamente, o café exportado pela Colômbia em parte é brasileiro, pois os colombianos importam quantidades significativas de grãos do Brasil, que lá são processados e comercializados na forma de cafés especiais. Em 2021, os colombianos compraram 1,2 milhão de sacas do Brasil.

Mesmo enfrentando obstáculos, não tem faltado pujança e desempenho ao setor cafeeiro no Brasil. Desde o início da década de 1990, com a extinção do Instituto Brasileiro do Café (IBC) e de todas as formas de regulação na produção cafeeira nacional, a produção brasileira deslanchou, passando de 25,3 milhões de sacas anuais em 1991 para 63 milhões de sacas em 2021, enquanto os colombianos estacionaram em pouco mais de 12 milhões de sacas.

A arrancada brasileira deve-se ao elevado grau de competências “da porteira para dentro”, principalmente as práticas modernas de cultivo e processamento industrial e uma busca constante por melhorias na qualidade do produto.

“Da porteira para fora”, o Brasil consolidou-se como grande exportador, com os produtores se organizando em cooperativas ou usando mecanismos de hedge oferecidos pelo mercado e se aproximando de maneira eficiente e profissional do mercado consumidor no mundo.

Tendo como referência a bem executada campanha promocional colombiana, o CeCafé, em parceria com a Associação Brasileira da Indústria de Café (ABIC), vem desenvolvendo um trabalho que prioriza a sustentabilidade em todos os níveis da produção do país, hoje um fator extraordinariamente decisivo no comércio global.

O produto apresenta balanço negativo, sequestrando 10,5 toneladas de CO2 por hectare/ano. Internacionalmente, este balanço é, no máximo, neutro, fixando a diferença marcante entre a sustentabilidade brasileira e a internacional

O café brasileiro também tem tradição em programas de responsabilidade socioambiental em grandes áreas territoriais. São quase 265 mil produtores segundo o último censo agropecuário, 78% organizados em cooperativas. Mesmo sendo a cultura de base familiar, a presença do café é um sinal de qualidade de vida e geração de renda.

Outro ponto muito favorável é a sustentabilidade da produção brasileira de café, comprovada em importante levantamento do CeCafé sobre as emissões de CO2 na cafeicultura nacional.

Em modelos mais conservacionistas, o produto apresenta balanço negativo, sequestrando 10,5 toneladas de CO2 por hectare/ano. Internacionalmente, este balanço é, no máximo, neutro, fixando a diferença marcante entre a sustentabilidade brasileira e a internacional. O Brasil tem, desta forma, o café mais sustentável do mundo em termos de emissões de CO2.

Para ir além da evolução positiva do setor cafeeiro e conquistar também o crescimento no valor agregado do produto final, os próximos passos são evidentes e conhecidos dos participantes dessa cadeia produtiva. Uma reforma na tributação do ICMS é fundamental, assim como uma maior abertura para a importação de café.

Paralelamente, é preciso negociar acordos comerciais com países importadores para alterar a estrutura de tributação, reduzindo a diferença entre o café verde e o beneficiado, permitindo assim que a indústria privada possa atender o mercado mundial de maneira competitiva, perene, e a partir do Brasil, origem da maior parcela de café produzida no mundo. Em um contexto de sustentabilidade e eficiência, faria total sentido.

*Jacyr Costa Filho é presidente do Cosag - Conselho Superior do Agronegócio da Fiesp e sócio da Consultoria Agroadvice.