Quase sempre, a expectativa para um show se reflete no comprimento da fila – e hoje não foi diferente. Em São Francisco, uma multidão dobrou esquinas para ver de perto o encontro entre dois dos maiores rockstars do mundo dos negócios: Marc Benioff, fundador da Salesforce e dono da revista Time, e Tim Cook, CEO da Apple.
Como todo bom espetáculo pop, esse também atingiu a capacidade máxima. Mais de mil pessoas tentavam uma cadeira cativa no evento, mas apenas as 700 primeiras conseguiram lugar na arena que reuniu os líderes das empresas que, juntas, valem mais do que o PIB do México.
A conversa foi, de certa forma, o pontapé inicial para uma série de painéis que preenchem os quatro dias do Dreamforce, encontro anual promovido pela Salesforce, que reúne clientes e parceiros em uma estrutura digna de um festival de rock.
Apesar da euforia ao redor do evento, no palco, o clima era bastante intimista. Sentados de frente um para o outro, Benioff e Cook falaram por meia hora. Ali, trouxeram aos holofotes alguns raros detalhes pessoais, como o fato de o fundador da Salesforce não saber o paradeiro do próprio computador e de trabalhar exclusivamente pelo smartphone.
"Eu não uso mais o computador. Tudo o que eu preciso, tenho no meu smartphone. Aprendemos inovação com vocês", disse Benioff a Cook.
E os números ecoam essa mudança de hábito. De acordo com a consultoria Broadbandsearch, o uso de computadores vem diminuindo, enquanto o de smartphones cresce.
Em 2013, usuários consumiam 144 minutos por dia de conteúdo pelo desktop. Já em 2018, esse tempo caiu para 128 minutos diários. Quando o assunto é smartphone, a curva é ascendente. Em 2013, os usuários passavam 88 minutos por dia consumindo conteúdo em seus aparelhos, mas, em 2018, esse tempo saltou para 203 minutos diários.
Gadgets à parte, os executivos dedicaram o restante do tempo disponível ao diálogo de assuntos que consideram urgentes: sustentabilidade, privacidade e igualdade.
Seja verde
Considerada pela organização não-governamental Greenpeace a empresa mais sustentável do mundo, a Apple faz sua lição de casa quando o assunto é meio ambiente.
A empresa da maçã não apenas conta com fontes renováveis de energia para abastecer suas instalações na Califórnia como também promove práticas ecologicamente corretas junto a seus fornecedores, numa tentativa de tornar sua cadeia ambientalmente responsável. "Não queremos fazer apenas o que somos legalmente obrigados", disse Cook.
Mas as práticas não suavizam a autocrítica. No palco, o executivo revelou que sabe que a Apple é responsável pelo tempo de vida e pelo consumo de uma bateria e que é obrigação da companhia trabalhar em alternativas mais duradouras e limpas. A empresa de Benioff, por sua vez, se comprometeu a usar apenas energia renovável até 2022.
Todos por um
Enquanto a sociedade repensa sua relação com a tecnologia, discutindo o uso das redes sociais, aparelhos e afins, as empresas de tecnologia correm para fazer a sua parte. Promover um quadro diverso de funcionários e garantir igualdade entre os pares são duas das ações urgentes dessas companhias.
O assunto não escapou à conversa dos CEOs. Tim Cook chegou a declarar que todas suas lutas, bem como as da Apple, são pautadas pela "dignidade e respeito, que devem ser a forma básica como tratamos uns aos outros".
Revelando momentos mais privados, Cook disse que, como muitos, ele também vivenciou uma "crise" aos 30 e poucos anos, buscando seu propósito de vida. "Para alguns pode ser um novo curso, um novo trabalho, uma promoção, um novo amor, um filho", disse. "Mas a razão pela qual estamos aqui é para ajudar os outros. A vida fica tão mais simples quando descobrimos isso."
Isso explica, talvez, esse perfil mais ativista que o executivo vem demonstrando. Recentemente, Cook cobrou do Senado americano uma posição sobre a reforma da imigração, que acabaria com as cotas de green card por nacionalidade e tornaria o sistema por ordem de chegada – num processo mais justo.
Sob a gestão de Cook, a Apple ficou mais diversa
Também sob a gestão de Cook, a gigante de Cupertino ficou mais diversa. Segundo o último relatório da empresa sobre essa questão, a Apple tem 32% de sua força de trabalho feminina, 13% hispânica, 9% negra, 21% asiática e 3% multirracial.
A Salesforce tem uma posição bastante parecida, com 31,6% de mulheres na equipe e 10,1% de pessoas que pertencem a um grupo de minoria. O quadro deve mudar rapidamente, visto que 47% das novas contratações da empresa de Benioff são de mulheres ou de minorias.
Privacidade, por favor
Na parceria recém-anunciada entre Apple e Salesforce, foi revelado o aplicativo Trailhead GO, exclusivo para dispositivos iOS. Trata-se de uma plataforma móvel de educação, com uma interface gameficada.
O compartilhamento de dados reacende o debate sobre segurança de dados – preocupação de Tim Cook, que declarou que privacidade é um direito humano fundamental.
"Você não pode simplesmente 'adicionar' a privacidade. Não é algo que você faz, é algo que você projeta", afirmou Cook
Para ele, a privacidade é um elemento que tem que fazer parte da estrutura inicial de um produto, não uma peça que tem que ser adicionada ao final do processo. "Você não pode simplesmente 'adicionar' a privacidade. Não é algo que você faz, é algo que você projeta", afirmou Cook.
Em 2016, a Apple chegou a enfrentar o FBI por conta do tema. Na época, o FBI queria a Apple desbloqueasse o iPhone de Syed Farook, autor do massacre de San Bernardino, que deixou 14 pessoas mortas. O pedido do FBI era para que a Apple desenvolvesse uma versão do iOS que aceitasse eletronicamente combinações infinitas de senhas, até que a ordem certa dos números fosse encontrada.
Convencidos de que essa solução poderia colocar em risco a privacidade de milhares de iPhones, além de abrir precedentes, a empresa da maçã se recusou a colaborar.
A fala do executivo da Apple acontece em um momento em que reguladores americanos questionam os limites e poderes das grandes empresas de tecnologia. O Google e o Facebook são duas das companhias que estão mais sob pressão neste assunto, sendo que ambas receberam multas bilionárias por má conduta nesta área.
O executivo indiano Sundar Pichai, CEO do Google, foi, inclusive, intimado a comparecer perante o Congresso para responder algumas perguntas sobre a maneira que sua empresa coletava dados e como zelava pela segurança disso. Da mesma forma, Mark Zuckerberg, fundador e CEO do Facebook, também teve de participar de audiências públicas para explicar as práticas da sua companhia.