O Brasil vive um momento de paradoxos quanto à sua política de transição enérgica sustentável. A menos de quatro meses da realização da Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2025, a COP30, que será em novembro, em Belém, o País ainda sequer regulamentou o marco legal do hidrogênio verde (H2V), considerado o "Santo Graal" da descarbonização por ser produzido pela eletrólise da água usando energia renovável (solar ou eólica).

Mesmo com esse cenário de incerteza regulatória, o Brasil conta hoje com um pipeline de pelo menos 60 projetos, em investimentos que ultrapassam R$ 188 bilhões. Segundo a Associação Brasileira da Indústria do Hidrogênio Verde (ABIHV), aportes diretos e indiretos na tecnologia devem causar um impacto de R$ 7 trilhões no PIB nacional até 2050.

Controlada pela gigante alemã Linde, líder global do segmento de gases industriais, a multinacional brasileira White Martins dará um passo importante para entrar de forma definitiva nesse mercado em franca expansão no País, ainda que sem todas as regas claras por parte do governo federal. A companhia inaugura em outubro, no mês anterior à COP, uma fábrica de hidrogênio verde em Jacareí (SP).

“Essa fábrica consolida nossa estratégia de sustentabilidade. Está quase pronta e vai ser o grande cartão postal da companhia para a COP30”, diz Gilney Bastos, presidente da White Martins e da Linde América do Sul, em entrevista ao NeoFeed. “A grande sacada é que vamos produzir hidrogênio verde em escala industrial a um custo que o mercado compre.”

A fábrica é considerada gêmea da unidade da Linde em Singapura, a maior unidade do tipo naquele país. A capacidade produtiva da unidade no interior paulista é de 800 toneladas anuais da fonte de energia limpa. Desse volume, 80% serão destinados para venda externa e 20%, utilizados pela fábrica de vidro Cebrace, que fica no mesmo município.

Nos últimos dois anos, a companhia investiu no País R$ 650 milhões em unidades industriais, que incluem a fábrica em Jacareí e das demais construções realizadas pela empresa no período, de plantas de gases industriais.

Essa é a segunda unidade da empresa no Brasil. A primeira, um quinto do tamanho dessa nova, foi inaugurada em 2022, em Ipojuca (PE), com capacidade anual de 156 toneladas de hidrogênio verde. O modelo na planta do Nordeste é contrário ao adotado na fábrica paulista: nesse caso, 80% são destinados para uma fábrica de alimentos e somente 20% estão disponíveis para o mercado.

A fábrica no interior paulista será apenas a sexta no mundo construída pela Linde de H2V. Hoje, as plantas estão em Porsgrunn (Noruega), Niagara Falls (Canadá), Leuna (Alemanha), Singapura, além da unidade pernambucana.

“Quando a gente lançou, era uma novidade produzir a partir de uma energia renovável, usando eletrolisador, que separa o hidrogênio da água. Naquele momento, não tínhamos dimensão das dificuldades que encontraríamos para concluir a planta e garantir a certificação”, explica Bastos.

É justamente por isso que a companhia enxerga essa primeira experiência no H2V como um projeto-piloto. Agora, segundo o CEO da White Martins, é a consolidação da aposta da companhia nesse mercado, ainda em formação.

Desafios e incertezas

Para Diogo Lisbona, pesquisador do Centro de Estudos em Regulação e Infraestrutura da Fundação Getúlio Vargas (FGV Ceri), ainda há caminhos para o desenvolvimento da escala do hidrogênio verde. Mas, segundo ele, as iniciativas do setor privado mostram que o caminho está aberto.

“Estamos falando de uma indústria que está nascendo, com todas suas incertezas e possíveis rotas tecnológicas. Mas, para uma empresa como a White Martins realizar um investimento desse, ela precisa enxergar essa demanda. É uma aposta”, afirma.

Segundo Bastos, há planos inclusive de futuras novas construções, à medida que o mercado nacional for absorvendo a demanda ofertada pela White Martins. Entre os setores que a companhia aposta como potenciais clientes estão siderúrgicas, indústria química, de mineração.

“O principal fator de competitividade é que o hidrogênio verde não será muito mais caro do que o hidrogênio convencional. Como são investimentos próprios feitos pela empresa, o custo de produção também fica menor”, explica o presidente da companhia.

Gilney Bastos, presidente da White Martins

“Além disso, dá um estímulo para que essas empresas possam avançar em seus projetos de sustentabilidade. Se a gente consegue promover essa descarbonização, certamente será uma opção muito viável para o setor produtivo”, diz Bastos.

No caso da fábrica de Jacareí, a empresa irá atender majoritariamente até um raio de cerca de 800 quilômetros, o que significa estabelecer contratos de fornecimentos a empresas que ficam em São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo e parte de Minas Gerais. A partir daí, o produto pode perder competitividade, por causa da elevação do custo logístico.

Na avaliação do especialista da FGV, a demora na regulamentação por parte do governo federal da lei 14.958, sancionada em agosto do ano passado, que instituiu o marco legal do hidrogênio verde, não é o ponto central que poderia inviabilizar possíveis investimentos privados. Para ele, o foco precisa estar na existência da demanda.

“Para andar, esse mercado depende mais do custo de produção e de potenciais clientes. Podem surgir questões regulatórias que vão ser importantes mais para a frente, mas hoje o que se enxerga é a oferta e a demanda”, diz Lisbona.

Isso explica também, para ele, investimentos como o da White Martins, em Pernambuco e em São Paulo, e de outras empresas. Um dos exemplos é um projeto da mineradora australiana Fortescue, que obteve autorização, em outubro do ano passado, para construção de uma planta de hidrogênio verde no complexo portuário e industrial do Pecém, no Ceará.

A mineradora planeja construir uma fábrica de que teria capacidade de produzir 900 milhões de toneladas por ano. A conclusão, no entanto, seria para 2028 ou 2029, o que coloca a White Martins na dianteira para consolidação desse mercado.

De qualquer forma, o presidente da White Martins considera essa demora na regulamentação como um ponto de atenção para o desenvolvimento deste tipo de política pública e de segurança para novos investimentos. Uma das questões que ainda não avança trata da certificação do H2V por empresas brasileiras.

“Nossas duas fábricas receberam certificações da Alemanha. Não sei exatamente o que falta para o Brasil concluir isso, mas é importante que saia. Essa segurança jurídica é necessária”, diz. “Quando você tem uma definição mais abrangente, que te garante benefícios e determina obrigações, isso poderia acelerar essa transformação energética no País. Mas o start já foi dado. O mercado está amadurecendo.”

Ainda que o foco da White Martins seja justamente no abastecimento do mercado nacional, o presidente da empresa diz que há um horizonte em projetos para exportação, justamente no momento que todas as regras estiverem totalmente claras. “Nesse caso, serão projetos em consórcio, e já há alguns avançados, como o do Pecém e do Porto do Açu, no Rio de Janeiro.”

Com presença em mais de 100 países, o grupo Linde alcançou receita global de US$ 31,8 bilhões em 2024. No primeiro trimestre de 2025, o faturamento chegou a US$ 7,5 bilhões.

No período de 12 meses, o Brasil, pela White Martins, contribui com receita de US$ 1,5 bilhão (R$ 8,3 bilhões, na cotação atual do dólar). A companhia possui 70 plantas industriais em todos os estados, para atender mais de 20 setores da economia.

Em todo o grupo Linde, o Brasil é o único local que usa a marca própria do País. Na América do Sul, com a marca Linde, o faturamento chega perto de US$ 2 bilhões (US$ 11,1 bilhões). Na região, a companhia está na Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela.

No acumulado de 2025, as ações da companhia dona da White Martins na Nasdaq registram valorização de 12,8%. A empresa está avaliada em US$ 219,7 bilhões.