Desde a publicação do fato relevante de 11 de janeiro deste ano pela Americanas, com a indicação das inconsistências contábeis existentes no balanço da rede varejista, a relação entre a gestão executiva, liderada por Miguel Gutierrez, e o board, presidido por Eduardo Saggioro, ficou profundamente abalada.
De um lado, Gutierrez vem afirmando que todos os passos dados pela companhia eram de conhecimento do conselho de administração. Do outro, Saggioro e os demais conselheiros dizem que só opinavam sobre aquilo que tinham conhecimento - e muitas informações não eram divididas com eles.
Entre as diferentes narrativas na busca por uma explicação sobre o que aconteceu com a Americanas, as versões de lado a lado se contradizem.
Para tentar entender como funcionava o dia a dia dessa relação entre o board e o management da Americanas, o NeoFeed teve acesso a um conteúdo exclusivo: um e-mail de Eduardo Saggioro para Miguel Gutierrez.
Na segunda-feira, 31 de outubro de 2022, às 15h42, a mensagem eletrônica com o assunto “Pontos para Reunião Conselho” tinha um único destinatário: o presidente executivo da rede varejista.
Com cerca de 1.500 caracteres, o texto de Saggioro começa com a saudação, “Miguel, boa tarde!”, para em seguida direcionar o objetivo: “seguem alguns pontos que acredito que serão levantados na próxima reunião de conselho e comitês”.
O momento era importante para a Americanas. Dali a alguns dias, em 10 de novembro, seria apresentado ao mercado o balanço do 3º trimestre da companhia, o último publicado pela rede varejista (o NeoFeed teve acesso aos resultados de outubro e novembro, que você pode ler aqui).
O Ebitda ajustado de julho a setembro de 2022 apresentaria uma queda de 21,6% na comparação com o mesmo período do ano anterior. E o resultado líquido negativo de R$ 212 milhões aprofundava a crise na empresa, que nos nove primeiros meses do ano passado acumulava um resultado líquido negativo de R$ 447 milhões.
A expectativa do mercado não era das melhores com a Americanas e o setor como um todo. Em 20 de outubro, um relatório do BTG Pactual alertava para as condições macroeconômicas adversas. “Os papéis dessas companhias são mais sensíveis a temas como juros, recessão econômica e inflação”, dizia o relatório. Naquele pregão, a ação da rede varejista recuou perto de 13%.
No entanto, antes de todo o mercado conhecer o balanço da Americanas, Saggioro dividiu o seu e-mail nos tópicos Comitê Financeiro/Resultados e Comitê de Gente. O primeiro, claro, era o mais importante, como você poderá ler a seguir, na íntegra:
“Há preocupação relevante dos conselheiros sobre os resultados e consumo de caixa, e como isso se desdobrará para frente. Este deve ser o tema mais debatido.
“Aqui, pegando o gancho com o que o Marcio [Cruz, diretor responsável pelos canais digitais] explicou no nosso último call semana passada, acredito que valha a pena mostrar uma análise detalhada separando a cia em dois negócios, um de telefonia/eletro (ticket alto / margem baixa / necessidade de crédito / menor frequência) e um de GM (ticket baixo / margem alta / sem necessidade de crédito / maior frequência). E dado o cenário altamente competitivo e de alto risco de crédito relacionado ao primeiro negócio, houve uma decisão deliberada de reduzi-lo, pelo menos momentaneamente. Já o segundo negócio vai bem, com crescimento saudável e ganho de share. O consumo de caixa é um efeito pontual (e não estrutural) relacionado a este ajuste do primeiro negócio.
“Essa análise e maneira de explicar os resultados pode ser útil não só para o conselho, mas também para o release e apresentação ao mercado. Se o Marcelo [Nunes, diretor financeiro] precisar de ajuda com essa análise e narrativa, o time LTS [o veículo de investimentos de Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Beto Sicupira, que prestava consultoria ao Conselho] está totalmente à disposição.”
Saggioro, que utiliza o endereço eletrônico @lts-investments, ainda dedica dois parágrafos sobre o Comitê de Gente: “Além da questão da meta extra de final de ano, também é desejado que sejam apresentados mais detalhes da movimentação de ações da diretoria dos últimos dois meses. Caso surjam mais tópicos vindo dos conselheiros, envio para você asap. Abs”
O NeoFeed conversou com pessoas próximas a Saggioro para tentar entender o porquê do teor dessa mensagem. A resposta mais comum entre todos é que o presidente do Conselho costumava fazer um registro, com a organização dos assuntos, de toda a explanação trocada no comitê estratégico para que tanto o board como o management tivessem o entendimento completo e detalhado do que estava sendo tratado.
Outro ponto que chama a atenção no e-mail que o NeoFeed teve acesso é o comportamento de Miguel Gutierrez. O presidente executivo da Americanas encaminhou às 16h03, ou seja, 11 minutos depois de receber a mensagem do presidente do Conselho, para Anna Saicali, Marcio Cruz e Timotheo Barros com um breve comentário: “Seguem os pontos encaminhados pelo Saggioro”.
É interessante notar que na página 15 do press release do resultado do 3º trimestre, logo após o quadro dos destaques financeiros, o tópico “Desaceleração da categoria de eletrônicos” contém uma explicação semelhante à descrita no e-mail transcrito acima:
“A performance do 3T22 foi impactada pela forte desaceleração das categorias de alto ticket, como eletrônicos, aliada à decisão da companhia de ser menos agressiva comercialmente para preservar a margem bruta em um cenário de baixa demanda e alta competição. A desaceleração da receita demandou uma série de ajustes nas despesas (pessoal, lojas, marketing, ...), com o objetivo de reprogramar a estrutura da Companhia.”
Esse ponto reforça a mensagem da administração, assinada por Gutierrez, no início do press release. Nele, o então CEO escreve que “no e-commerce brasileiro, a categoria de eletrônicos registrou queda de -19,6% nas vendas do terceiro trimestre na comparação com o mesmo período do ano passado, segundo a Neotrust. Como são produtos de ticket médio mais alto e que dependem de crédito, sofrem o impacto direto da escalada da inadimplência e da taxa de juros no país”.
Mas, para justificar que o momento ruim era passageiro, Gutierrez afirmou que a Americanas chegava “ao mês de setembro com um estoque preparado para atender à demanda do quarto trimestre, tradicionalmente o melhor momento para o mercado varejista, com eventos importantes como Black Friday, Natal e Ano Novo, além da Copa do Mundo neste ano. Em outubro, no Dia das Crianças, tivemos uma prévia do que vem pela frente e crescemos o dobro do mercado no evento, ganhando market share”.
Nesse último trecho, o então CEO antecipa um desempenho que só seria conhecido no trimestre seguinte para animar os investidores. Mas, como o NeoFeed mostrou com exclusividade, essa informação não condizia com a verdade.
Os dados financeiros da Americanas de outubro de novembro de 2022 obtidos pelo NeoFeed mostram que as vendas do Dia das Crianças registraram uma receita 11,7% menor do que no ano anterior. No mês seguinte, que é bastante influenciado pela Black Friday, o faturamento foi 5,7% menor.
Procurado, Miguel Gutierrez disse que não iria se pronunciar.
A assessoria do Conselho de Administração da Americanas encaminhou este posicionamento:
“A assessoria do conselho de administração da Americanas afirma que o presidente do conselho sempre atuou com diligência e com o máximo de zelo e ética sobre a companhia, observando rigorosamente as normas e a legislação aplicável.
“Segundo o Código de Melhores Práticas de Governança Corporativa do IBGC (2023), a presidência do conselho de administração “é responsável pela definição de pautas, condução das reuniões do colegiado e encaminhamento de prioridades e temas estratégicos ao conselho”. Neste mesmo documento, consta que é atribuição do presidente do conselho de administração 'relacionar-se com o principal executivo da organização, sem interferir em sua gestão, a fim de acompanhar a operação e transmitir as deliberações do conselho de administração'.
“Portanto, de acordo com as melhores práticas de governança, sempre foi padrão na Americanas que a pauta das reuniões de conselho de administração fosse discutida previamente entre o CEO e o presidente do conselho. E neste contexto é que se insere o e-mail de 31/10/2022, tendo em vista que nos dias 07/11/2022 e 08/11/2022 ocorreriam as reuniões do conselho de administração e de seus comitês de assessoramento.
“Na época, o tema prioritário do conselho se referia aos resultados do 3º trimestre, uma vez que havia expectativa de virem abaixo do orçamento e aquém do que o conselho e o mercado em geral previam. Esse tópico foi inclusive publicado pela imprensa no dia 20/10/22 a partir de conversas da então área de relações com investidores da Americanas com analistas de sell side de bancos.
“Assim, naquele momento, havia vários questionamentos de conselheiros para a então diretoria sobre as razões que levaram à piora de resultados no 3º trimestre e sobre as perspectivas para os semestres subsequentes, tendo sido justificado que era um ajuste pontual das categorias de eletroeletrônicos e telefonia (devido a um cenário de juros altos, menor demanda dos consumidores e acirramento da concorrência), e não uma piora estrutural do negócio. Portanto, era natural que o presidente do conselho solicitasse ao CEO que esse tópico fosse apresentado de forma detalhada na reunião de conselho que ocorreria na sequência.
“A então diretoria publicou no portal de governança Diligent Boards (acessado por todos os conselheiros) material detalhado mostrando que a queima de caixa no 3º trimestre era pontual, que no 4º trimestre a previsão era de que seria gerado caixa de R$ 504 milhões e que também seria gerado caixa saudável nos anos subsequentes. O índice de alavancagem terminaria o ano de 2022 em 1.6 segundo esse material que, além de publicado para todos os conselheiros, foi integralmente apresentado pela diretoria ao comitê financeiro em 07/11/2022.
“Portanto, o e-mail de 31/10/2022 apresentado nesta reportagem somente reforça a diligência do conselho de administração em questionar e pedir mais detalhamentos sobre os resultados do 3º trimestre e sobre as perspectivas econômico-financeiras futuras da Americanas. Também reforça que absolutamente nada foi tratado pela então diretoria com o conselho de administração sobre a existência de uma dívida não reportada de Risco Sacado ou sobre verbas de propaganda cooperada (VPCs) indevidamente lançados na contabilidade, o que se sabe hoje serem os instrumentos da fraude contábil de dezenas de bilhões, conforme publicado nos fatos relevantes de 11/01/2023, 13/06/2023 e 14/06/2023.”
A Americanas encaminhou a seguinte nota: “A Americanas informa que seus órgãos sociais atuam de acordo com as melhores práticas de governança do mercado. É boa prática que temas estratégicos sejam acompanhados pelos membros do Conselho de Administração e Comitês.”