Por todos os ângulos que se olhe para entender o que aconteceu com a Americanas, depois que foram descobertas inconsistências contábeis de R$ 20 bilhões que levaram a quase centenária varejista a pedir recuperação judicial com dívidas de R$ 43 bilhões, há um sujeito que aparenta estar oculto, mas que esteve por lá nos últimos 30 anos: Miguel Gutierrez.
Ex-CEO da Americanas, ele deixou o cargo em dezembro de 2022, para que Sergio Rial assumisse o comando da varejista e descobrisse o rombo bilionário. Gutierrez estava na companhia desde 1993, quando foi contratado para a área financeira da varejista controlada, na época, por Jorge Paulo Lemann, Carlos Alberto Sicupira e Marcel Telles, o trio do 3G. Dez anos depois, ele assumiu o cargo de CEO, onde se manteve por 20 anos.
Nos últimos dois dias, o NeoFeed ouviu depoimentos de pessoas que trabalharam com o executivo. A palavra que mais escutou sobre ele foi que era “extremamente disciplinado”, mas também dono de um estilo de gestão “rude” que, às vezes, descambava para gritos e xingamentos, algo que não cabe mais nos dias de hoje.
“Ele era muito objetivo e altamente disciplinado”, diz uma fonte que trabalhou diretamente com Gutierrez. “Era o melhor gestor dentro daquilo que você considera uma boa gestão baseada em dados, fatos e estatísticas. Nesse sentido, era um expoente.”
Low profile em um nível muito acima daquele que é praticado pelos executivos das empresas do trio do 3G, como Ambev, Kraft Heinz, Burger King, entre outras, Gutierrez raramente concedia entrevistas, dificilmente aparecia em público e não tem perfil em redes sociais.
Por esse motivo, poucos profissionais, mesmo do mercado de varejo, o conheciam. Diversas pessoas com quem o NeoFeed conversou disseram que nunca tiveram contato com Gutierrez, um fato surpreendente para quem esteve em uma das principais empresas do Brasil nos últimos 30 anos.
Um dos motivos disso é que seu trabalho era, essencialmente, para o público interno. Foi definido pelas fontes como um executor. Em geral, de ordens de Carlos Alberto Sicupira, o Beto, o responsável do trio 3G, que sempre esteve mais perto da gestão da Americanas, comprada em 1983.
“Ele era um executor que espremia fornecedor e botava pressão nos diretores”, diz outra fonte que o conheceu. “Era um cara que fazia tudo, sabia de tudo, conhecia tudo da empresa, mas não aparecia.”
Nas raras vezes em que mostrava a “cara” era lacônico e não se estendia em discursos longos. No Americanas Summit de 2021, um evento online de pouco mais de cinco horas de duração, realizado em 15 de outubro daquele ano, seu rosto e sua voz apareceram por pouco mais de dois minutos.
O vídeo era uma mensagem gravada de boas-vindas ao evento. A todo momento, os olhos de Gutierrez procuravam o texto a ser lido (inclusive, a foto que abre essa reportagem foi tirada deste vídeo).
Na última apresentação dos resultados trimestrais da companhia, Gutierrez falou por cerca de cinco minutos e trinta segundos. Sua introdução foi um comentário geral da trajetória da Americanas até aquele momento.
Na ocasião, ele destacou as métricas que foram cumpridas pela direção, a importância do follow on para aquisições e para a entrada em novas verticais de negócios, além da colocação de “dois bonds no mercado externo de US$ 1 bilhão que nos permitiu alongar muito o perfil da nossa dívida”.
Na parte final, Gutierrez ressaltou que “temos compromisso de crescimento com rentabilidade, sem tirar os olhos para o futuro”. E concluiu: tenho “muito orgulho do modelo de negócio que construímos nos últimos 20 anos”.
Por que Gutierrez ficou tanto tempo como CEO da Americanas, uma prática que parece arcaica nos dias de hoje, em que os executivos se movimentam com mais frequência de uma empresa para outra?
A explicação é que Gutierrez era uma pessoa da extrema confiança de Sicupira. Ao lado de Anna Saicali, Timotheo Barros e Marcio Cruz, três executivos que estão também há muito tempo na Americanas, ele fazia parte do que uma fonte chamou de a “guarda pretoriana” de Beto Sicupira. “Eles não faziam nada sem o OK do Beto”, diz uma fonte. “Presenciei inúmeras situações que, antes de tomar uma decisão, eles consultavam o Beto.”
Mas só isso não explica o longo período de Gutierrez à frente da Americanas – ele é formado em engenharia mecânica pela UFRJ, onde estudou com Carlos Brito, outro executivo que fez história como CEO da AB Inbev, a maior cervejaria do mundo, da qual Lemann, Sicupira e Telles são acionistas.
Desde que chegou a Americanas, vindo da Casa da Moeda, Gutierrez foi um funcionário acima da média, segundo relatos. Começou na parte financeira e depois migrou para a área de distribuição e logística. “Ele era fora da curva”, diz um executivo que trabalhou com ele naquela época.
De acordo com esse executivo, Gutierrez foi responsável por introduzir toda a distribuição e logística da Americanas nos anos 1990. E esse trabalho o levou para o cargo de CEO. “Ele tinha disciplina e a capacidade de bater metas”, diz, referindo-se a algo que era parte da cultura de meritocracia de Lemann, Sicupira e Telles, que hoje são acionistas de referência da Americanas, com aproximadamente 30% do capital da varejista.
Cobrança por resultados era um desses pilares da cultura de Lemann, Sicupira e Telles. Por essa razão, um executivo que trabalhou com Gutierrez no fim dos anos 2000 lembra que ele era muito duro para cobrar o cumprimento das metas da equipe.
“Era uma gestão dura, mas técnica e eficiente, e eu me adaptei bem a este estilo”, diz. “Quando não cumpria prazos e metas, eu explicava as razões e ficava tudo bem.”
Outro depoimento ouvido pelo NeoFeed, no entanto, relata um cenário diferente em que a obsessão por resultados e metas iam muito além de uma cobrança dura. "Era um comportamento abusivo do ponto de vista moral", diz uma pessoa que presenciou algumas dessas "broncas".
Outra característica de Gutierrez é que ele era extremamente disciplinado. Em especial, com horários. “Se ele marcasse uma reunião às duas horas, era bom estar na sala às duas horas.”
O escândalo da Americanas, uma inconsistência contábil que deve ter durado anos e deixou um rombo de R$ 20 bilhões, segundo estimativas preliminares, surpreendeu as fontes com quem o NeoFeed conversou. “Não combina com ele”, diz uma delas. “É difícil saber o que aconteceu”, afirma outra. “É claro que ele, como CEO, precisa ser responsabilizado”, acrescenta uma terceira fonte.
O fato é que, nos últimos meses, alguns movimentos soam hoje suspeitos. Um deles foi a venda de ações realizada por diretores da Americanas no segundo semestre de 2022. Eles levantaram R$ 241,5 milhões com a venda de papéis durante agosto e outubro, época em que as ações dispararam em reação a indicação de Rial como CEO, chegando a serem cotadas entre R$ 18 e R$ 21 – hoje estão em R$ 1.
A remuneração dos executivos da Americanas está também agora sob escrutínio. No acumulado da década, a diretoria da Americanas recebeu, em termos nominais, sem corrigir pela inflação, R$ 505,4 milhões, segundo uma reportagem do jornal O Estado de S. Paulo. De acordo com o texto, o valor acumulado é quase o dobro do pago por concorrentes as suas diretorias como Lojas Renner (R$ 252,8 milhões) e Magazine Luiza (R$ 270,9 milhões).
Outro ponto foi a distribuição de dividendos em 2022, que atingiu o valor recorde de R$ 550,6 milhões. Para efeito de comparação, a Via, dona das marcas Casas Bahia e Ponto, não distribui dividendos ou juros sobre o capital próprio (JCP) para os acionistas desde 2018. O Magazine Luiza decidiu repartir um total de R$ 100 milhões no exercício equivalente a 2021.
No meio dessa confusão, Gutierrez até agora não se pronunciou, como é praxe de seu caráter recluso. O colunista Lauro Jardim, do jornal O Globo, publicou uma nota dizendo que ele foi morar na Espanha. O NeoFeed não encontrou o executivo para comentar essa reportagem.
O que o mercado se pergunta, agora, é como um executivo tão focado, disciplinado, diligente e austero deixou passar, por tanto tempo, um rombo de R$ 20 bilhões sem enxergar o erro?