O caso da Americanas continua suscitando dúvidas entre operadores do mercado financeiro, investidores, acionistas e especialistas em direito e governança corporativa.

A sucessão de fatos relatados pelo CEO demissionário Sergio Rial, ao descrever as inconsistências em balanços financeiros que apontaram rombo de R$ 20 bilhões nas finanças da rede varejista, permanece com pontos obscuros.

Entre algumas especulações, a mais óbvia é que eventuais irregularidades na condução dos balanços não eram recentes. Ou seja, havia uma forma de atuação contábil de relativo conhecimento do corpo diretivo da empresa.

Esse aspecto é importante por colocar em evidência eventuais falhas de governança não só da diretoria executiva, como também do conselho de administração e outros órgãos de apoio, como os conselhos fiscal e de auditoria. Somente uma investigação profunda deverá apontar eventuais responsabilidades.

No caso das Americanas, chama atenção o peso do conselho de administração da empresa, composto por sete integrantes – quatro representantes dos acionistas de referência e três independentes.

Entre os nomes, todos com vasta experiência e currículos lustrados, estão Carlos Alberto Sicupira, Cláudio Moniz Barreto Garcia, Eduardo Saggioro Garcia, Sidney Victor da Costa Breyer, Mauro Muratorio Not, Vanessa Claro Lopes e Paulo Alberto Lemann. Todos são investidores conhecidos dentro e fora do país ou com participação em outros conselhos de empresas de diferentes setores.

De acordo com advogada Lavinia Junqueira, sócia do escritório Junqueira le Advogados e especialista em direito corporativo, um integrante do conselho de administração tem basicamente o dever de supervisionar as ações da diretoria executiva.

“O conselheiro ajuda a aprovar as demonstrações financeiras, relatórios de auditoria e tem o dever de supervisão diante do que foi feito pela administração que está lá, as práticas contábeis para garantir que a empresa tenha processos de controle adequados”, diz a especialista, membro de Comitê de Auditoria da Totvs, do Comitê de Investimento do FIP Parques e do Conselho Fiscal do Instituto Natura.

Ela aponta um dever adicional do conselheiro, que é o de assegurar transparência. Ou seja, cabe ao conselho decidir se uma prática contábil que não é usual envolve risco de transparência na demonstração financeira.

Segundo ela, em caso de irregularidades, o conselho de administração não tem uma responsabilidade objetiva, e sim individual. “Se for constatado erro ou falha grave, a responsabilidade do conselheiro é limitada aos seus atos, com culpa ou dolo”, acrescenta.

Ela aponta diferença no modelo de governança em outros países envolvendo o conselho de administração. “Nos EUA, por exemplo, o conselho de administração presta contas aos investidores; no Brasil, a empresa é que é responsável perante os investidores”

Inconsistências

O rombo da Americanas veio à tona última quarta-feira, 11 de janeiro, quando o então CEO demissionário Rial revelou ter encontrado “inconsistências” na sua conta de fornecedores de balanços anteriores, incluindo no ano de 2022, que somaram R$ 20 bilhões em 30 de setembro.

As dívidas referentes ao rombo têm como credores bancos grandes e médios do país, que financiavam as operações da varejista com fornecedores. A última auditoria completa da Americanas referente ao exercício de 2021, feito pela PwC, aprovou as demonstrações financeiras da companhia sem ressalvas.

De acordo com a advogada Lavínia Junqueira, desde o início a empresa errou nas justificativas. Segundo ela, o que foi falado por Rial na conference call com investidores foi mal explicado, dando espaço para volatilidade no mercado e questionamentos adicionais.

Além disso, ela acha difícil que ao menos o conselho fiscal e a auditoria não tivessem conhecimento prévio da prática contábil. “Existe uma inconsistência entre a nota explicativa de instrumentos financeiros e o passivo que aparece na demonstração financeira. Existe uma linha nos instrumentos financeiros dos fornecedores, e essa linha ficou parecida com o valor que ficou fora do balanço”, acrescenta Junqueira.

Em nota à imprensa, a Lojas Americanas defendeu seu conselho de administração. “Tão logo se deu conta das inconsistências contábeis, o conselho de administração sinalizou o compromisso em divulgar a apuração e o trabalho de retificação dos números, com seu auditor externo atual”, diz a nota.

Mesmo ressaltando que precisaria de mais informações, a especialista observa que é difícil imaginar que as inconsistências divulgadas não tinham sido de conhecimento prévio da direção.

“Se de fato tivesse ocorrido o que foi dito na conference call, seria algo fora do padrão para uma empresa com a governa societária que tem, com índice de sustentabilidade na B3 e Dow Jones”, afirma.

Essas inconsistências deveriam ter sido analisadas pelos órgãos de governança e expostos de forma transparente nas demonstrações financeiras.

“Acredito que se trata de uma prática contábil decidida, de não incluir nas movimentações financeiras o chamado forfait – desconto que recebe com os bancos”, diz. “Isso se chama pedalada: vendo três mercadorias e só tenho uma para entregar.”

Em termos de punições, incluindo se cada conselheiro agiu com culpa ou dolo, elas só ocorrerão após processos de apuração por órgãos independentes.

Segundo ela, será necessário ver as atas das reuniões do conselho, checar as auditorias, se alguém pediu explicação e se foi avaliado alguma infração às norma da CVM (Comissão de Valores Mobiliários).

No caso de um conselheiro ter questionado o auditor, pedido um parecer e recebido esclarecimentos, só haverá responsabilização se surgirem evidências de omissão. Por isso, segundo ela, é necessária uma apuração rápida e rigorosa.

Junqueira desconfia que uma investigação mais ampla deve mostrar que a Americanas não é a única empresa que coloca forfait no balanço e que os bancos não mantêm controle de práticas assimétricas. “Tudo precisa ser fiscalizado, o que está em jogo é a credibilidade do mercado financeiro”, diz.