A Superintendência-Geral do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) multou em R$ 3 milhões a Wellhub (ex-Gympass) pelo descumprimento de cláusulas do Termo de Compromisso de Cessação (TCC) assinado com o órgão em setembro de 2022, na segunda-feira, 2 de dezembro.
O TCC limitava, entre outros itens, os contratos de exclusividade da plataforma com academias a 20% da sua base em cada região. A sanção teve como origem novas denúncias sobre a manutenção dessas condutas e foi acompanhada do pedido de reabertura do inquérito que investigou tais práticas.
Esse é mais um dos embates que têm como pano de fundo as disputas entre plataformas e agregadores, cujo exemplo mais notório foi o segmento de delivery, que alimentou uma série de conflitos entre iFood, Rappi e Uber Eats.
As plataformas de academias e de bem-estar são o mais novo front nesse contexto. Além da Wellhub, estão no ringue a TotalPass, da Smart Fit, e nomes como a GuruPass. Na busca pela hegemonia do setor, a tensão está mais evidente do que nunca. E promete novas batalhas muito em breve.
“Os dados mostram claramente que o acordo está sendo cumprido à risca”, afirma Pietro Carmignani, vice-presidente executivo de parcerias do Wellhub, em entrevista por e-mail ao NeoFeed. Ele cita o limite de 20% de contratos de exclusividade imposto pelo Cade.
“O Wellhub está bem abaixo disso, com cerca de 10% de parceiros exclusivos na nossa plataforma”, diz. “Não bastasse isso, desde que o TCC foi firmado, o mercado tornou-se mais competitivo, com o crescimento relevante de concorrentes, demonstrando o sucesso do acordo feito pelo Cade.”
Há quem discorde dessa visão. “Esse é um momento de ou vai ou racha”, diz Felipe Souza, cofundador da GuruPass. “Está muito latente o incômodo das academias, que estão tentando fugir dessa mão única. Vai chegar um ponto em que eles (a Wellhub) vão fechar o mercado. E aí, não tem mais volta.”
Com essa avaliação, a GuruPass vai engrossar o volume de denúncias contra a Wellhub no Cade. A empresa estuda se a ação será registrada à parte ou no âmbito do inquérito já em curso, que passará novamente pelo crivo do tribunal do órgão. A ideia é que ela seja protocolada até 11 de dezembro.
Um dos players mais recentes nesse mercado, a GuruPass consolidou, em pouco mais de um ano de atuação, uma base de 3 mil academias. E, há cerca de quatro meses, começou a identificar uma onda de cancelamentos nessa carteira, algo, até então, inédito em sua operação.
“Em 99% dos casos, a razão era justamente a exclusividade com a Wellhub”, diz Souza. “Recentemente, muitos desses ex-parceiros vieram nos pedir ajuda, dizendo que foram enganados. E tomamos a decisão de reunir provas e judicializar, até para representá-los. Porque está havendo, sim, um abuso de poder.”
Responsável, ainda em 2020, pela denúncia que deu origem ao inquérito e, posteriormente, ao TCC firmado pela Wellhub com o Cade, a TotalPass também analisa a possibilidade de tomar novas medidas junto ao órgão antitruste.
“Logo após o TCC, a Wellhub ficou mais cautelosa”, afirma Diogo Corona, COO da Smart Fit, o grupo por trás da TotalPass. “Depois, sentimos que eles foram desrespeitando os termos aos poucos e começaram a testar os limites. Mas cometeram deslizes, o que ajudou nessa nova decisão do Cade.”
À parte de avaliar um novo movimento no Cade, Corona entende que o momento é mais favorável para que as próprias academias ingressem com ações no órgão. “Até então, essas redes eram reféns. Essa nova decisão dá mais coragem e segurança para que elas façam suas denúncias diretamente”, diz ele.
Ponto de partida
Essa decisão mais recente do Cade teve justamente como ponto de partida as investigações feitas com academias diante de novas denúncias feitas pelas redes Tecfit e Power Life Gym, em junho deste ano. As redes alegavam supostas práticas anticoncorrenciais da Wellhub.
“Eu fui coagido a assinar um novo contrato de exclusividade com a Wellhub. Me disseram que não tinham como coexistir com a TotalPass na minha rede. Ou eu assinava nesses termos ou eles me ejetavam da plataforma”, disse, na época, Felipe Castro, fundador da Tecfit, em entrevista ao NeoFeed.
Na oportunidade, outros donos de academias, que preferiram manter seus nomes em sigilo, disseram ao NeoFeed ter recebido e-mails da Wellhub informando que, em função da mudança da marca, seria preciso assinar um novo contrato, que, por sua vez, incluía uma cláusula de exclusividade.
A partir das investigações feitas pelo Cade, a nota técnica divulgada pelo órgão desta semana traz declarações de proprietários de academias, cujos nomes também foram mantidos em sigilo, que reclamam de supostas condutas da plataforma.
“Registro que não quis e não quero a exclusividade, estando a ela obrigado atualmente por ter caído numa armadilha da Wellhub, que me ofereceu um novo contrato sem explicar de forma transparente as contrapartidas e a cláusula de exclusividade”, afirma uma dessas redes citadas na nota.
A academia em questão prossegue em sua manifestação: “E, tão logo eu assinei e transcorreu o prazo de arrependimento de 7 dias, eles imediatamente começaram a me cobrar o cancelamento com a TotalPass.”
Souza, da GuruPass, chama a atenção para outra estratégia que estaria sendo adotada pela Wellhub e que também está sob o “pente fino” do Cade: a oferta de grandes somas de recursos na forma de adiantamento para as academias.
“Muitas vezes, esse empresário não tem preparo para entender que esse dinheiro, na verdade, estava no seu fluxo de caixa”, diz Souza. “Ele está antecipando e ficando na mão de um agregador. E quando vai renovar o contrato, está na mão desse parceiro, que tem políticas para reduzir esse repasse.”
No outro canto desse “ringue”, Carmignani, da Wellhub, observa que a empresa segue comprometida com o “cumprimento rigoroso” do TCC e que a recomendação da Superintendência-Geral está sujeita à decisão do tribunal do Cade, ainda sem data prevista.
O executivo afirma que "as reclamações registradas no Cade representam casos isolados, enquanto a ampla maioria dos nossos mais de 3 mil parceiros exclusivos e 30 mil parceiros totais no Brasil demonstra satisfação com o crescimento e as oportunidades proporcionadas por nossa plataforma”.
Carmignani também recorre ao discurso de abuso de poder para justificar os aportes “estratégicos e seletivos” em parceiros exclusivos. Ele não cita nomes, mas faz uma clara referência à musculatura da Smart Fit – e sua ligação com a TotalPass – para destacar os supostos impactos para outras academias.
“Ao estabelecer parcerias estratégicas com negócios locais, o Wellhub capacita esses operadores independentes a permanecerem competitivos em um mercado altamente concentrado em torno de um único player dominante e com fortes tendências de integração vertical”, pontua ele.
Nesse contexto, o executivo reforça que boa parte do setor é formado por academias de pequeno e médio porte. E frisa que, segundo o Sebrae, metade das micro, pequenas e médias empresas do mercado fitness no Brasil fecha nos primeiros cinco anos.
Segundo Carmignani, as academias e studios de pequeno e médio porte representam cerca de 90% da base da Wellhub, que destina mais de 50% de seus pagamentos a esses parceiros. E que, no último ano, a plataforma incluiu mais de 2,5 mil dessas academias em planos mais acessíveis.
“Se formos impossibilitados de continuar investindo nos parceiros que escolhem trabalhar unicamente conosco, isso será prejudicial para a indústria, principalmente para os pequenos e médios parceiros que dependem desse suporte para competir com o player dominante do mercado”, afirma.
Com um discurso semelhante, a Wellhub recorreu ao Cade para solicitar a revisão e o cancelamento da compra da Velocity pela Smart Fit. O pleito não encontrou, porém, eco no órgão, que aprovou sem restrições a transação anunciada em julho desse ano. Desde então, a rede foi desplugada da Wellhub.
“A Velocity trabalhava com a TotalPass e a Wellhub. E a Wellhub cancelou a parceria de forma unilateral, o que nós comprovamos no Cade”, afirma Corona. “Jamais tiraríamos a rede, pois isso oneraria o franqueado.”
Já sobre uma possível referência à dominância da Smart Fit no mercado de academias, Corona rebate com o argumento de que essa discussão, diferentemente do que acontece no mercado de agregadores, não é válida no caso de qualquer segmento do varejo físico. Entre eles, o de academias.
“Em restaurantes, por exemplo, ninguém discute quantas lojas têm o McDonald’s, o Burger King, o Subway. Assim como em academias, onde a barreira de entrada é muito baixa”, afirma. “Quantas academias estão sendo montadas. Por outro lado, quantos agregadores existem nesse mercado?”
Levando-se em conta as 733 academias da Smart Fit no Brasil, entre próprias e franquias, e o patamar mais baixo das estimativas desse mercado, cujas projeções variam de 30 mil a 60 mil estabelecimentos, a participação do grupo gira em torno de 2,4% no setor.
Além do Cade
À parte desse fogo cruzado, a disputa nesse espaço não tem o Cade como único campo de batalha. Além da arena judicial, cada plataforma tem suas próprias armas e estratégias para seguir ganhando terreno num mercado ainda em maturação.
Fundada em 2012 e pioneira nesse mercado, a Wellhub tem, a princípio, bastante fôlego para seguir forte nessa guerra. A empresa já captou US$ 605 milhões junto a investidores como o Softbank. Na última rodada, em agosto de 2023, liderada pela sueca EQT, a plataforma foi avaliada em US$ 2,4 bilhões.
Com um modelo B2B, que oferece aos usuários o acesso a academias e a outras ofertas de bem-estar via departamentos de recursos humanos, a Wellhub está hoje em 11 países, com mais de 20 mil clientes corporativos e 3,5 milhões de assinantes.
Uma das principais frentes para ampliar esses números envolve ofertas para os RHs das empresas. Nessa direção, um movimento recente foi um plano digital gratuito que traz opções de bem-estar para os funcionários dessas companhias no Brasil e no exterior.
Outro foco é reforçar a pegada de estender o modelo além das academias, com ofertas de parceiros em segmentos como saúde mental, meditação, nutrição e cuidados com o sono. Atualmente, são mais de 70 aplicativos de bem-estar plugados na plataforma global e, no Brasil, mais de 50 opções.
Já em seu mercado tradicional, a Wellhub tem mais de 60 mil academias cadastradas, sendo 30 mil no Brasil. Em 2024, a plataforma adicionou 10 mil parceiros - 5 mil no País A empresa não abre outros dados da operação local. Mas segue ampliando essa base, inclusive, com acordos de exclusividade.
Um dos mais recentes nesses moldes envolve a Panobianco, rede de Campinas (SP) com 258 franquias. Segundo a empresa, o acordo está em vigor desde 9 de novembro e não sofrerá nenhum impacto das novas medidas do Cade. A divulgação para assinantes só teve início, porém, nesta semana. No mercado, estima-se que a Wellbub tenha antecipado mais de R$ 250 milhões em receita para a empresa e seus franquiados.
Questionada, a TotalPass, que mantém parceria com a Panobianco, informou, por meio de sua assessoria de imprensa, que “não recebeu nenhuma notificação por parte da Panobianco referente a qualquer distrato”.
Ao mesmo tempo, a plataforma “discorda” da base de 30 mil academias divulgada pela Wellhub. Em suas contas, esse número está em cerca de 27 mil estabelecimentos. Já a plataforma da Smart Fit alcançou 22 mil academias parceiras, sendo que as marcas próprias do grupo, avaliado em R$ 10,6 bilhões, representam menos de 5% desse universo.
“O mercado de agregador precisa ter o efeito de rede, com todas as pontas funcionando. No nosso caso, RHs, usuários e academias”, afirma Corona. “O difícil é levantar voo, mas nós já passamos essa rebentação. As duas bases estão muito próximas. É questão de tempo para igualar.”
Com um modelo também centrado no B2B, ele diz que, para reduzir essa distância, um dos passos mais recentes da TotalPass foi ampliar a atuação da plataforma junto a grandes empresas. E, para isso, concentrou parte dos seus esforços em 2024 para ampliar sua capilaridade.
“O enterprise exige capilaridade e esse era um gap que tínhamos. Mas, hoje, isso já é algo muito marginal”, afirma Corona. De 1.013 cidades no fim de 2023, a TotalPass saltou para uma presença atual em 1.450 municípios.
Nesse intervalo, Nestlé, Carrefour, Bradesco, Porto, Petz, Dasa e JBS foram algumas dos clientes que passaram a compor a sua carteira, cujo número total não é revelado. Essa base cobre um universo potencial de mais de 5 milhões de usuários, dos quais, 1,35 milhão foram adicionados em 2024.
Com um modelo diferente de seus pares, baseado em ofertas B2C, a GuruPass tem como ambição se consolidar, curiosamente, como o “iFood das academias”. E também vem investindo para ampliar seus laços com nomes de maior porte do mercado. Nesse caso, porém, junto a grandes redes de academias.
“Esse foi um espaço que, até então, não tínhamos forçado muito a entrada. Mas agora, estamos conversando com algumas das principais redes”, diz Souza. A plataforma revelou ao NeoFeed um dos atalhos – até então não divulgado - para avançar nesse terreno.
Há dois meses, a GuruPass levantou uma rodada – o valor não foi revelado - com a Kikos, uma das principais distribuidoras de equipamentos para o mercado fitness no Brasil e com ampla penetração nas grandes redes de academias do País.
Até então, a companhia havia captado R$ 5 milhões em uma rodada pré-operacional com a Estáter, butique especializada em investimentos, fusões e aquisições. E um aporte – de valor também não revelado – de um scout fund ligado à americana Andreessen Horowitz.
Em outra frente, porém, não há pressa para expandir a operação. Com 70 mil usuários, a plataforma está disponível em São Paulo, Rio de Janeiro e acaba de chegar ao Paraná. “O mais importante não é quantidade, mas a densidade da oferta. O usuário quer ter variedade perto dele”, diz Souza.
Para o cofundador da novata do trio perfilado nessa disputa, Souza acredita que esse mercado, ainda nascente e com muito espaço a ser explorado, tem pouca abertura para ser um setor onde um “vencedor ficará com tudo”.
Não seria exagero dizer que, na prática, esse foi o desfecho no setor de delivery, onde o iFood acabou consolidando e dominando 90% do mercado. Uma das “baixas” dessa guerra foi o Uber Eats, que deixou o País no início de 2022.
“No longo prazo, se chegarmos a esse conceito do ‘the winner takes it all’, será, claro, quem tiver o melhor modelo", afirma Souza. “Mas também é óbvio que ele precisará ser sustentável e saudável para os donos das academias. E o setor ainda não está nem perto de chegar nesse estágio.”