Já faz 47 anos que o economista Edmar Bacha cunhou o termo Belíndia para definir o Brasil. Um país com leis e impostos da Bélgica (país rico e pequeno) com a realidade social da Índia (pobre e gigante). Naquela época, o Brasil tinha apenas três marcas de carros: Ford, Chevrolet e Volkswagen. Quase meio século depois, são 30 marcas, sendo 16 delas fabricando no Brasil. Mas a Belíndia continua mais viva do que nunca.
Em um cenário de 14,3 milhões de desempregados, a marca de carros que mais cresceu no primeiro trimestre de 2021 foi... a Ferrari! Um volume pequeno, claro, pois seus 60% de crescimento representaram apenas oito unidades vendidas, contra cinco de janeiro a março de 2020. Os carros da Ferrari, no entanto, custam de R$ 2,4 milhões a R$ 6,9 milhões. As oito unidades vendidas tiveram um tíquete médio de R$ 4,525 milhões.
Mas a Ferrari não explica tudo. Baixando um pouco de nível, outras duas marcas estão surpreendendo em vendas desde o início da pandemia de coronavírus: Porsche e Audi, ambas do grupo Volkswagen. Em 2020, a Porsche teve o melhor ano de sua história no Brasil, com crescimento de 35%. Ela já vinha de um recorde no ano anterior (1.849 unidades) e agora acaba de bater o recorde do primeiro trimestre: 830 carros entregues.
Porsche, Audi e Ferrari tiveram números melhores do que os do mercado. As vendas de automóveis de passeio caíram 11% nos três primeiros meses de 2021. Neste período, a Porsche cresceu 5% e a Audi teve uma queda de 5%, menor do que a do mercado.
Já na comparação de março deste ano (cenário grave de pandemia) com março do ano passado (quando a pandemia só impactou a última semana), a situação é ainda mais favorável às marcas de luxo. A venda de automóveis de passeio cresceu 8%, porém a Audi subiu 12%, a Porsche decolou 81% e a Ferrari duplicou o resultado, uma alta de 100%.
A Porsche fica em um meio-termo entre o mundo dos milionários e o mundo a parte dos consumidores da Ferrari. Seu carro mais vendido, o icônico Porsche 911, que teve 235 emplacamentos no trimestre, custa de R$ 689 mil a R$ 1,509 milhão nas configurações básicas. A rede de concessionários passou de sete para dez unidades.
Presente há 20 anos no Brasil, a Porsche tem uma base de clientes fidelíssima – a marca oferece atividades como o campeonato Porsche Cup e o Porsche Clube. Nesse segmento, não basta vender o carro: é preciso oferecer ao cliente uma oportunidade de usá-lo em eventos exclusivos.
Versões inéditas do Porsche 911 ampliaram o volume de vendas do carro em 225%. “Com a ampliação da rede em novas regiões, maior variedade de modelos e mais volume, conseguimos ampliar a oferta para novos grupos de clientes”, afirma Werner Schaal, diretor de vendas da Porsche Brasil.
O caso da Audi é um pouco diferente. Ela é uma marca mais generalista do que a Porsche e, oficialmente, ainda tem uma fábrica, em São José dos Pinhais (PR), junto com a Volkswagen. Porém, a Audi não substituiu o Q3 nem o A3 Sedan na linha de montagem paranaense. Ao contrário, há um ano, a marca passou a apostar em carros de altíssimo desempenho e suas vendas nesse nicho explodiram.
Em apenas três meses deste ano, a Audi vendeu mais modelos R e RS do que todos os anos de seus 27 anos de presença no Brasil. Foram 273 unidades dos modelos RS Q3 (SUV), RS Q3 Sportback (SUV cupê), RS 4 Avant (perua), RS 5 Sportback (cupê de quatro portas), RS 6 Avant (perua), RS 7 Sportback (cupê de quatro portas), RS Q8 (SUV grande), TT RS (cupê de duas portas) e R8 (cupê superesportivo).
Os preços desses carros variam de R$ 486 mil a R$ 1,410 milhão. Para dar mais um exemplo de que o segmento de luxo é um mundo à parte, a perua “mais barata” do Brasil custa nada menos que R$ 611 mil (RS 4 Avant). Todas as outras marcas, nacionais ou importadas, desistiram deste segmento. Não a Audi, que aposta na mística da “perua mais rápida do mundo” (RS 6 Avant).
Curiosamente, quando trouxe sua primeira perua esportiva para o Brasil, ainda pela Senna Import, nos anos 1990, a Audi destacava o fato de o RS 2 usar motor Porsche. Hoje nem precisa. A Audi faz tanto sucesso com a linha RS que simplesmente eliminou de seu catálogo a linha S, de esportivos mais "dóceis". Não há meio-termo na parte belga da Belíndia: ou a pessoa escolhe um carro normal ou então vai direto para um esportivo que tem pelo menos 400 cavalos de potência.
Mas, afinal, por que os ricos e milionários estão comprando tanto carro de altíssimo valor no Brasil? “Os clientes do segmento de luxo são ávidos por inovações e novas tecnologias, ou seja, eles têm o desejo de adquirir o que há de mais moderno no mercado”, diz Daniel Rojas, diretor de vendas da Audi do Brasil.
Do lado da Porsche, Schaal faz coro: “Nossa linha de produtos nova e atraente, o início bem-sucedido do Taycan como primeiro Porsche totalmente elétrico e o carisma de nossa marca contribuíram para este resultado positivo, apesar dos tempos difíceis”, afirma.
Rojas, da Audi, explica que houve mudança também na forma de comercializar os esportivos da linha RS. No passado, as concessionárias faziam os pedidos e, quando os veículos chegavam na rede, elas tinham que comercializar a unidade que estava disponível.
“Em 2020, mudamos radicalmente este formato de vendas e, agora, os clientes conseguem configurar o modelo exatamente do jeito que querem antes da produção”, afirma Rojas. Os carros são entregues em um período de três a quatro meses. A Porsche já atuava assim (só muda quando há excesso na produção).
Esse modelo de vendas deixa o cliente cheio de dinheiro muito satisfeito, pois o carro fica ainda mais exclusivo, segundo Rojas. No caso do Audi R8, há mais de 1 mil itens de customização. Por último, mas não menos importante, a população mais abonada ampliou o interesse pela compra de veículos e outros artigos de luxo, durante a pandemia, “em função da impossibilidade, por exemplo, de investimentos em viagens e turismo”, segundo Rojas.
De fato, a pandemia alterou hábitos de consumo. Antes dela, no fim de 2019, o CEO da Audi do Brasil, Johannes Roscheck, estava preocupado em dar à marca maior relevância num cenário em que as pessoas estavam se afastando do modelo tradicional de compra e migrando para outras experiências de mobilidade. Tudo mudou. Tanto que a Porsche e a Audi são as marcas líderes no segmento de carros elétricos. No total, a Audi já vendeu 204 unidades do E-tron e a Porsche vendeu 169 unidades do Taycan.
Quanto à Ferrari e seu mundo particular, ainda mais exclusivo do que os da Porsche da Audi, vale lembrar que o primeiro trimestre costuma ser o mais fraco no histórico da marca no Brasil. Os oito carros vendidos no primeiro trimestre, portanto, têm potencial de se transformarem em 50 no final do ano, superando em muito as 33 unidades de 2018 e as 35 de 2014.
Já a popularíssima Volkswagen – do mesmo grupo da Porsche e da Audi – acaba de encerrar a produção do pequenino Up. Sua única versão, de R$ 60 mil, foi considerada cara e o público rejeitou o subcompacto, que vendeu 1,8 mil unidades no trimestre. A Belíndia continua mais viva do que nunca.