Há duas semanas, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) divulgou ao público uma série de mudanças nas regras para ofertas públicas de distribuição de valores mobiliários. Foram editadas quatro novas resoluções, todas elas com o intuito de tornar todo o processo mais simples e ágil.
Das mudanças apresentadas, uma delas tem chances de reverberar no mercado, ao mudar a dinâmica da atividade de coordenação de ofertas públicas, inclusive ofertas públicas iniciais de ações (IPO, na sigla em inglês). A Resolução 161 prevê a partir do ano que vem um novo regime de registro de coordenadores, ampliando o grupo de entidades que podem realizar esse trabalho.
Embora tenha ganho pouca atenção, a medida atinge uma atividade dominada por grandes corretoras e bancos, abrindo uma janela de oportunidade para elevar a concorrência nessa área. Entre aqueles que começam a estudar a possibilidade de se enveredar nessa área estão as gestoras de investimentos, com avaliações de que isso pode mudar o patamar de muitas casas e dar mais autonomia na distribuição de seus produtos. De quebra, podem ainda ajudar a destravar operações de empresas menores.
“Vimos nos últimos anos gente saindo de grandes bancos para irem criar assets independentes, multimercados”, diz José Laloni, vice-presidente da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima). “O mercado cresceu muito, está muito dinâmico, e acreditamos que as novas regras podem permitir a chegada de outros players que vão facilitar a ligação entre empresas e investidores.”
Normalmente um dos público-alvos dos coordenadores de ofertas, o segmento de gestão de ativos está estudando a Resolução 161 e avaliando quais implicações isso pode ter para suas atividades e modelos de negócios. Afinal, elas estariam entrando em uma nova atividade que não dominam, saindo do seu core business, que é a gestão de recursos.
Para o curto prazo, a expectativa é de que a resolução possa dar maior autonomia na distribuição de produtos. Ao permitir a coordenação de oferta, a Resolução 161 pode acabar desburocratizando o processo de distribuição de cotas de fundos das gestoras, reduzindo a quantidade de intermediários e, consequentemente, os custos para os investidores e as gestoras.
“Hoje em dia, eu já posso distribuir meus fundos, mas não posso contratar outro distribuidor, porque quem pode fazer isso é o coordenador, então preciso contratar alguém para simplesmente ter outro distribuidor”, afirma Daniel Pegorini, CEO da Valora Investimentos, gestora especializada em renda fixa de crédito privado, renda fixa estruturados, imobiliário e participações, com R$ 8,5 bilhões em ativos sob gestão. “Então, nesse sentido, vejo com bons olhos que gestoras possam ser coordenadoras.”
Mas a verdadeira oportunidade está na possibilidade de coordenar ofertas de ativos mobiliários, abrindo uma nova linha de receita para as empresas. Atualmente, o trabalho de coordenação de ofertas públicas está muito concentrado nos grandes bancos e corretoras.
No ano passado, por exemplo, o Itaú BBA dominou os rankings da Anbima em operações de renda fixa e de renda variável, com o total de ofertas atingindo R$ 596 bilhões, alta de 60% em relação a 2020. E o restante das posições ocupadas por grandes instituições - em renda fixa, Bradesco BBI e o BTG Pactual ficam com a segunda e a terceira posições, respectivamente.
A dominância do mercado faz com que eles abram mão de realizar operações menores. Ofertas na casa dos R$ 10 milhões e de companhias pouco conhecidas não interessam para grandes bancos, e até para algumas corretoras de porte médio, por não oferecerem ganhos substanciais. No caso da renda fixa, o fee médio cobrado varia de 0,5% a 1% em relação ao montante da oferta.
A chegada de assets na parte de coordenação pode ajudar a CVM em sua intenção de trazer mais companhias para o mercado de capitais, principalmente para a renda fixa. A expectativa é que novos entrantes no mercado de coordenação de ofertas como as gestoras atuem muito mais na renda fixa, onde a possibilidade de realizar operações de menor porte é muito alta.
No caso de ofertas grandes, como debêntures, e operações em renda variável, que basicamente contempla IPOs e follow-ons, dificilmente esses novos entrantes terão capacidade de competir com os grandes bancos, dada a magnitude da operação e os ganhos – um IPO pode render um fee de 3% a 5% do montante colocado.
“IPO é algo bem complexo, porque envolve preparar a empresa em termos de governança, os balanços dos anos anteriores precisam estar auditados, tem que ter estrutura para vender a operação no exterior, o volume da operação precisa ser muito elevado”, afirma Maurício Quadrado, responsável pela área de investment bank do Banco Master.
“Quando falamos em renda fixa, a conversa é outra, aí tem pessoa física, pessoa que compra CRI por incentivo fiscal, ali é mais fácil democratizar a coordenação. Ações é outro bicho”, complementa.
Preparação
Ainda que a CVM tenha aberto um caminho para as assets trilharem, elas precisarão realizar mudanças profundas em seu modelo de negócio caso decidam atuar com coordenação de ofertas.
A parte considerada “simples” desse processo envolve criar toda uma estrutura apartada da área de gestão de recursos, para evitar qualquer tipo de conflito de interesse. A Resolução 161 prevê duras regras de compliance, com separação de sistemas e de equipes e adoção de mecanismos de controle de informações relevantes, representando um investimento considerável de recursos.
“Precisa ter uma separação clara dentro da gestora entre a parte de gestão de carteira e a intermediação de ofertas públicas”, diz Jana Araujo, sócia da área de mercado de capitais do escritório de advocacia Lefosse. “Isso teria que ser feito por meio da criação de uma holding, com um CNPJ para a gestora e outra para a coordenação, para evitar qualquer tipo de contaminação.”
Para João Daronco, analista da Suno, esses investimentos já inviabilizam que diversas assets atuem nesse tipo de operação. “Não vejo assets menores fazendo isso. Assets maiores podem entrar nesse meio, porque pode ser uma nova linha de negócios, uma nova linha de receita. Mas o mercado de coordenação tem players consolidados, a concorrência é muito intensa e pode não dar o retorno esperado”, diz.
A grande questão é justamente criar toda a rede de contato que um coordenador precisa ter para emplacar uma oferta, seja na renda fixa ou na variável, de qualquer tamanho. “O DNA das assets não é distribuição”, diz Rodrigo Regis, responsável pela área de serviços financeiros na Ativa Investimentos. “O cliente final deles não é o core business, eles têm mais clientes distribuindo via plataforma.”
A experiência da EQI Investimentos mostra que o caminho que as assets precisarão trilhar é longo e complexo. Com R$ 16,3 bilhões sob custódia e R$ 2,3 bilhões sob gestão, a empresa de investimentos, que está se tornando uma corretora, tem pretensões de eventualmente ancorar IPOs. Para isso, incorporou a equipe de investment banking da Rosenberg Partners, de olho em coordenar ofertas.
Mas mesmo com a estrutura para realizar operações e o valor que tem sob custódia, a EQI pretende começar devagar, com operações de dívida de até R$ 150 milhões, valor que para um banco tradicional não é difícil de colocar na praça.
“Mesmo quando me tornar corretora, e com a base grande de clientes que temos, acho que levará tempo para ser coordenador de IPO”, diz Juliano Custódio, fundador e CEO da EQI. “Para ancorar uma oferta de R$ 1 bilhão, é difícil conseguir fazer aqui com a nossa base de clientes. Para os bancos, é mais fácil, porque eles têm acesso aos grandes fundos.”