Nas próximas duas décadas, é estimado que cerca de US$ 84 trilhões devem mudar de mãos, saindo do controle dos baby boomers para herdeiros Millennials e da geração Z.

Por esse motivo, a maior transmissão de riqueza da história deixou de ser uma estatística distante e começou a virar agenda prática para bancos privados e gestores de patrimônio. Um movimento que tende a alterar preferências, linguagem e até os valores por trás das decisões de investimento.

Para a indústria global de wealth management, isso significa duas coisas. Primeiro, uma disputa mais intensa por retenção de famílias já atendidas há anos. E, em paralelo, uma corrida por relevância diante de herdeiros que chegam com outras referências: mais digitais, mais globalizados e, com frequência, mais sensíveis a temas como tecnologia, clima e impacto.

É neste contexto que o Lombard Odier, um dos maiores bancos suíços e do mundo especializado em gestão de fortunas com mais de 225 anos de história e CHF 323 bilhões em ativos de clientes (mais de R$ 2 trilhões) com 28 escritórios espalhados pelo mundo (inclusive o Brasil), tem investido para o desafio de reter seus clientes.

Em sua primeira vista ao Brasil, Xavier Bonna, managing partner do Lombard Odier, veio conversar com clientes e potenciais clientes e falou sobre esse desafio. “Esse é o maior exercício de retenção que a indústria já enfrentou, e muito estratégico para nós, mas também vemos uma oportunidade de atrair novos clientes desde que o banco consiga endereçar as temáticas certas para a nova geração”, diz Bonna, em entrevista ao NeoFeed.

Há ainda outra mudança que pressiona a indústria de wealth management: o dinheiro ficou mais “móvel”, sem uma jurisdição muito fixa, e, ao mesmo tempo, mais exposto à transparência fiscal e regulatória. “Hoje, o mundo financeiro é realmente transparente. E existe uma competição grande entre países, e até dentro de países, por lugares atrativos para viver, não apenas por conforto e segurança, mas também por níveis razoáveis de tributação”, afirma Bonna.

Confira os principais trechos da entrevista:

Um dos maiores temas do wealth management hoje é a maior transferência de riqueza da história, dos baby boomers para Millennials e, depois, Gen Z. Por que isso é tão importante para a indústria e quais desafios mudam quando o patrimônio passa a ser do “novo dono”?
Quando falamos de sucessão e dessa grande transferência de riqueza — dos “boomers” para Millennials e, até talvez Gen Z —, isso é absolutamente estratégico para nos mantermos no topo e para todo o setor em duas frentes.

A primeira é que esse é o maior exercício de retenção que a indústria já enfrentou. A geração dos boomers acumulou muito patrimônio no pós-guerra, especialmente depois da Segunda Guerra Mundial e agora chegou o momento de transferir essa riqueza. Para nós, é crucial manter esses ativos e essas famílias conosco.

A segunda frente é que também existe uma oportunidade de atrair novos clientes. Mas aí está o desafio: é preciso endereçar os temas certos para essa nova geração e do jeito dela, com uma experiência digital de alto nível e com abordagens de investimento que, em alguns casos, são diferentes das dos pais, como sustentabilidade, investimentos temáticos, impacto e, principalmente, dar propósito ao investimento, não apenas retorno.

Além disso, existe a questão do digital. A forma como essa geração quer se relacionar com bancos privados e family offices é muito mais “tech”. Isso é um desafio?
É um desafio enorme e uma prioridade absoluta. Para um banco que atua apenas em gestão de fortunas, digitalização é um programa muito caro, que exige investimentos pesados. É exatamente o que estamos fazendo agora. Provavelmente será um dos maiores investimentos da história do grupo para acompanhar essa evolução e entregar uma experiência digital de primeira linha.

Dito isso, nós atuamos em um business de pessoas. Ou seja: a tecnologia é importante, mas a relação humana precisa estar no centro. Podemos ser digitais e eficientes, mas o relacionamento é fundamental. Gostamos de nos definir como uma “boutique de investimentos”. O fator humano tem que aparecer em tudo, na forma como tratamos e aconselhamos famílias. Acreditamos que esse é o futuro.

Quando falamos de nova geração, surge sempre o tema de ativos digitais, como cripto. Muitos clientes mais velhos não querem, mas os mais jovens pedem e o mercado de wealth ainda tenta entender como lidar. O banco recomenda esse tipo de ativo?
Hoje, ainda não estamos equipados para custodiar ativos digitais para clientes. Não temos uma plataforma pronta para operar nisso. Como banco privado, é algo que gostaríamos de desenvolver no futuro e estamos trabalhando nessa direção, mas ainda não está implementado. No entanto, ainda não recomendamos ativamente ativos digitais na alocação dos clientes. Mas estamos acompanhando a evolução disso na indústria.

"Muitos pais não querem compartilhar exatamente o tamanho da sua riqueza com os filhos. E isso não precisa ser um problema"

Na prática, como vocês atraem e “abraçam” essa nova geração dentro do private banking? 
Cuidar de uma família não é um “one man show”. É trabalho em equipe e isso é estratégico. Em uma família, normalmente você tem pais e filhos com perfis diferentes. Então, muitas vezes, faz sentido ter dois níveis na relação: um banqueiro conversando com os pais e outro profissional, talvez mais jovem, falando com a próxima geração. A proximidade de idade ajuda, pois falam a mesma língua, entendem os dilemas geracionais, criam confiança mais rapidamente. E isso vale globalmente, no Brasil, na Suíça e em outros países. É algo que tentamos colocar em prática em diferentes equipes.

Dentro das famílias, o que costuma ser mais difícil de tratar, quando o tema é sucessão e transmissão de riqueza?
É difícil generalizar porque cada família é única. E, nesse processo, o mais importante nem sempre é o resultado final, mas a jornada: ao longo do caminho, surgem discussões que alimentam a própria história familiar.

Dito isso, alguns temas aparecem muito. Um deles é a definição de valores da família e às vezes pais e filhos têm percepções diferentes. Pode ser de transparência quanto ao patrimônio que possuem, performance, confiança, integridade.

Outro ponto é entender qual será o papel de cada membro da família para gerir o patrimônio, que é de todos. Cada membro tem habilidades diferentes. Alguém pode ser muito sensível e emocional, mas não ter familiaridade com finanças. Ainda assim, pode contribuir com senso de pertencimento e coesão do propósito da família. Outro pode ser mais técnico e trazer uma expertise específica. O objetivo é organizar papéis e contribuições, reconhecendo forças e fragilidades, para tornar a discussão mais eficiente e todos se sentirem incluídos.

E há um ponto clássico: muitos pais não querem compartilhar exatamente o tamanho da sua riqueza com os filhos. E isso não precisa ser um problema. O mais útil muitas vezes é discutir o processo de gestão: como se trabalha com profissionais, como a educação financeira é conduzida, como decisões são tomadas. Isso prepara a próxima geração para administrar melhor, seja qual for o tamanho da fortuna. Porque um grande patrimônio é uma oportunidade, sim, mas também é responsabilidade. Se não for bem cuidado, pode desaparecer em uma ou duas gerações.

Você acha que existe conflito entre gerações na forma de enxergar o dinheiro, estabilidade e construção de legado versus viver melhor o agora?
Eu não vejo exatamente um conflito, mas vejo sensibilidades diferentes. Estabilidade é importante para qualquer geração, especialmente em um mundo com muito ruído e volatilidade como hoje. As famílias buscam formas de se sentir mais organizadas e “fora da caixa”, com estruturas e processos que tragam estabilidade.

Ao mesmo tempo, vejo que a geração mais jovem é menos focada em bens materiais e mais focada em experiências e equilíbrio de vida. A geração dos boomers, em geral, trabalhou muito e buscou maximizar resultados, sem pensar tanto em work-life balance. A nova geração tende a refletir mais sobre esse equilíbrio, e isso é positivo.

"Famílias brasileiras muito ricas, muitas delas empreendedoras, seguem muito comprometidas em investir no Brasil, porque enxergam muitas oportunidades na economia local"

A indústria também mudou muito com o avanço da transparência fiscal e da cooperação internacional. Como isso afeta o wealth management, inclusive na Suíça?
Hoje, o mundo é transparente. Do ponto de vista de quem está em um banco suíço, a transparência fiscal é uma realidade. E existe uma competição grande entre países, e até dentro de países, por lugares atrativos para viver, não apenas por conforto e segurança, mas também por níveis razoáveis de tributação. Famílias muito ricas são móveis. Elas avaliam critérios e se deslocam. Na Europa, por exemplo, vemos fluxos de pessoas vindas da Bélgica, França e Reino Unido para jurisdições consideradas mais atrativas, como Itália, Dubai e às vezes, Singapura e Suíça.

Isso muda o jeito de fazer gestão patrimonial?
Sim. Se você é só um player doméstico e seu país é muito pesado do ponto de vista fiscal, isso pode ser difícil. Nós temos mais de 25 escritórios no mundo, sendo 19 fora da Suíça, então estamos bem equipados para apoiar famílias que se estabelecem na Ásia, na Suíça, na Itália e em outros lugares. É uma necessidade: o gestor de patrimônio precisa ter expertise local e equipes locais para cuidar dessas famílias quando elas se mudam de um país para outro, e elas tem sido cada vez mais nômades.

Essa é a sua primeira visita ao Brasil. Quais tendências você percebeu no Brasil, nas conversas com famílias?
Destacaria duas coisas que ouvi nos últimos dias. Primeiro: famílias brasileiras muito ricas, muitas delas empreendedoras, seguem muito comprometidas em investir no Brasil, porque enxergam muitas oportunidades na economia local. Mas, ao mesmo tempo, há uma percepção de concentração: patrimônio ainda pouco diversificado. A empresa da família está aqui e todos os investimentos também, o risco é concentrado. Vejo muita busca por diversificação agora. E há um ponto essencial: hoje, em praticamente todo relacionamento com uma família, é indispensável ter um wealth planner. Questões de mobilidade e estruturação patrimonial internacional viraram muito estratégicas, talvez mais que rentabilidade de portfólios.

O Brasil é um dos países onde vocês enxergam maior oportunidade?
É, sim, um país com muita oportunidade. Existe um viés natural de investir no próprio país, porque é onde você se sente mais confortável: investe no que entende, no que conhece. Para um suíço, por exemplo, o mercado interno é pequeno e sair para o mundo é mais natural. Já no Brasil há de fato tantas oportunidades que é mais desafiador dizer “vou alocar na Ásia, na Europa, nos Estados Unidos”. Mas é questão de tempo. Agora é o momento de pensar mais globalmente, mesmo sendo um país grande.