No mais novo e interminável capítulo da guerra comercial entre China e Estados Unidos, o governo chinês apresentou na terça-feira, 26 de março, uma queixa à Organização Mundial do Comércio (OMC) contra os americanos.
O motivo alegado é o caráter “discriminatório” da Lei de Redução da Inflação (IRA, na sigla em inglês) – programa de infraestrutura do governo Joe Biden de incentivo à transição energética, sancionado em 2022. Mas tudo indica que a disputa, desta vez, tenha pouco efeito prático.
Ao acionar o mecanismo de resolução de litígios da OMC, o objetivo do governo chinês é contestar os subsídios aos veículos elétricos (EVs, na sigla em inglês) previstos no IRA, conforme admitiu o Ministério do Comércio da China.
Sob uma nova regra da Lei de Redução da Inflação dos EUA, que entrou em vigor em 1º de janeiro, os compradores de carros elétricos não são elegíveis para créditos fiscais de US$ 3.750 a US$ 7.500 se minerais críticos ou outros componentes de baterias de EVs forem fabricados por empresas chinesas, russas, norte-coreanas ou iranianas.
A definição abrange qualquer empresa sediada na China, incluindo subsidiárias de empresas dos EUA, bem como empresas em outros lugares que sejam 25% ou mais detidas por entidades apoiadas pelo governo chinês.
“Sob o pretexto de ‘responder às alterações climáticas’ e de ‘proteção ambiental’, os EUA formularam políticas discriminatórias através da sua Lei de Redução da Inflação relativamente a novos veículos elétricos, excluindo produtos da China e de outros membros da OMC dos subsídios”, afirmou o ministério chinês num comunicado.
A exigência do IRA sempre foi vista pelos participantes da indústria como uma forma de reduzir o papel da China na cadeia de abastecimento da indústria de veículos elétricos dos EUA. Após a Lei da Inflação entrar em vigor, as montadoras americanas anunciaram quase US$ 200 bilhões em plantas de baterias e de EVs, projetadas para criar cerca de 195 mil empregos.
Mas a escalada do ciclo de inflação e juros, além do avanço chinês na cadeia de suprimentos dos veículos elétricos, impactaram na decisão dos americanos de comprar EVs com desconto.
Sob a nova regra deste ano, por exemplo, apenas 13 dos mais de 50 EVs à venda nos EUA passaram a ser elegíveis para créditos fiscais, abaixo das cerca de duas dúzias de modelos em 2023. Por isso, o acirramento da disputa comercial entre os dois países na OMC preocupa as montadoras.
O temor é que o governo dos EUA aperte ainda mais as restrições a componentes importados da China. A chinesa CATL, maior fabricante mundial de baterias para EVs, com 29% de participação, está em negociação com a Ford para licenciar sua tecnologia para a montadora produzir baterias para veículos elétricos em Michigan.
De acordo com o IRA, o licenciamento de tecnologia produzida na China ainda é permitido, mas nada impede que o governo dos EUA amplie a restrição em retaliação à ação da China na OMC - o que, na prática, prejudicaria o consumidor americano.
Mercado global
Biden já havia ordenado ao Departamento de Comércio dos EUA que abrisse uma investigação sobre software fabricado no exterior em automóveis, citando a tecnologia chinesa como um risco potencial para a segurança nacional. Ou seja, mesmo antes da queixa da China à OMC, as restrições aos produtos chineses corriam risco de aumentar.
Na outra ponta, juntamente com as baterias de íons de lítio e os painéis solares, os EVs são um produto importante da transição energética que o governo chinês vem apostando, invadindo o mercado global.
As exportações de veículos elétricos da China tiveram um ano de 2023 estrondoso, com um aumento anual de 77,6%, com mais de 120 milhões de veículos vendidos no exterior, em especial nos mercados asiático e europeu.
Esse crescimento também incomodou outro grande mercado. Desde o ano passado, a União Europeia está conduzindo uma investigação para checar se os chineses estão fazendo o que agora acusam os EUA: de oferecer subsídios, só que às montadoras chinesas.
A eventual resposta seria a imposição de tarifas de importação de EVs chineses de dois dígitos no bloco europeu. Os EUA, que já impõem um imposto de importação de 27,5% aos EVs chineses, ameaçam aumentar essa taxação.
A ironia dessa guerra comercial é que o impacto da queixa da China à OMC corre o risco de não dar em nada. Isso porque o Órgão de Recurso da OMC, o seu supremo tribunal, não funciona desde finais de 2019, quando os EUA bloquearam a nomeação de novos juízes para o painel. Ao menos no capítulo EVs da guerra comercial entre os dois países, não há vencedores à vista.