Um dia depois de o governo do presidente americano Joe Biden anunciar uma das regulamentações climáticas mais ambiciosas da história do país - destinada a garantir que dois terços dos novos automóveis de passageiros e caminhões leves vendidos nos Estados Unidos sejam totalmente elétricos ou híbridos até 2032 –, a indústria automobilística amanheceu nesta quinta-feira, 21 de março, diante de um duplo desafio.

Um deles é convencer o público americano a migrar para os veículos elétricos (EVs, na sigla em inglês). Um recorde de 1,2 milhão de carros totalmente elétricos saiu das concessionárias no ano passado. O marco representou, porém, apenas 7,6% do total das vendas de automóveis nos EUA, longe da meta de 56% para 2032 prevista pela nova regra. Outros 8% dos veículos vendidos foram híbridos.

Outro desafio é reduzir os custos de produção para tornar os EVs competitivos em relação aos carros movidos a gasolina nos EUA. Em setembro, a consultoria Cox Automotive estimou o preço médio do EV nos EUA em US$ 50.683, uma queda de 22% em relação ao mesmo mês do ano anterior.

Mesmo assim, o gráfico de vendas nacionais de EVs vinha embicando para baixo desde o segundo semestre de 2022, a ponto de as montadoras colocarem um pé no freio nos investimentos.

A General Motors e a Honda, por exemplo, decidiram abandonar no ano passado os planos para desenvolver em conjunto modelos elétricos de entrada porque não conseguiram encontrar uma estrutura de custos eficaz.

Em novembro, a Ford anunciou uma revisão no plano de investir cerca de US$ 3,5 bilhões em uma fábrica de baterias, em Michigan. Até a Tesla – superestrela dos veículos elétricos – anunciou que iria atrasar uma fábrica planejada no México.

Alguns fatores pesaram nesse recuo de investimento e de vendas, sendo dois deles financeiros. A comparação com os veículos zero a gasolina, que ainda são 28% em média mais baratos, foi decisiva. Também pesou a taxa de juros em financiamento para tirar um EV da concessionária, aliado à contratação do seguro (que cresceu 20% em 2023).

Há também o desequilíbrio no mapa de vendas, que impacta na percepção do americano quanto ao aumento da frota de EVs nas ruas, o que o estimula a adquirir um modelo. Enquanto na Califórnia 25% dos veículos zero vendidos no ano passado eram elétricos, esse índice foi de apenas 3% em Michigan, berço das montadoras.

As pesquisas indicam que muitos americanos têm um grande interesse em EVs, mas preocupam-se em encontrar estações de carregamento suficientes ou com sessões de carregamento que demorem muito. Quanto mais a frota local aumenta, como na Califórnia, mais cresce o número de estações de carregamento disponíveis. O efeito inverso em Michigan, por exemplo, desanima o potencial comprador.

Desaceleração

A necessidade de aumentar a frota de EVs diante da desaceleração nas vendas de carros elétricos é um sintoma de um problema muito mais grave que atinge as montadoras americanas.

Quando o presidente Biden assinou a Lei de Redução da Inflação (IRA, na sigla em inglês), em agosto de 2022, o objetivo era oferecer cerca de US$ 400 bilhões em incentivos para energia limpa, apoiando medidas de eletrificação e de eficiência energética, entre outras iniciativas.

Desde então, as montadoras anunciaram quase US$ 200 bilhões em plantas de baterias e de EVs, projetadas para criar cerca de 195 mil empregos, de acordo com levantamento do Fundo de Defesa Ambiental.

Só que as montadoras adotaram a estratégia equivocada para esse novo mercado, apostando na ideia de os carros elétricos serem aceitos como um substituto individual para os carros a gasolina. A premissa mostrou-se errada porque a transição para os veículos elétricos foi focada nos tipos de carros que já eram populares – o que significou uma enxurrada de lançamentos de grandes SUVs eletrificados.

“Os EVs de grande porte não fazem muito sentido, por serem maiores, exigem baterias maiores, que, por sua vez, elevam os custos”, afirma Edward Niedermeyer, jornalista especializado no mercado automobilístico e autor do livro Ludicrous: The Unvarnished Story of Tesla Motors ("Ridículo: a história nua e crua da Tesla Motors”, em tradução livre).

Outro efeito foi empurrar goela abaixo um tipo de EV que contraria o que seria uma política de transporte sustentável. O americano viaja apenas cerca de 64 km por dia em média e cerca de 93% das viagens nos EUA são inferiores a 48 km.

Assim, o estímulo à produção de modelos compactos de EVs e também de híbridos ajudaria as montadoras atingirem as novas metas até a transição. Os híbridos plug-in são capazes de viajar exclusivamente com bateria por curtas distâncias, antes que um motor a gasolina seja ligado.

Redução de emissões

As novas regras de emissão veiculares foram baixadas pela EPA, a agência ambiental americana, após longa negociação com as montadoras.

O setor de transportes é o maior emissor de gases do efeito estufa nos EUA, responsável por 29% do total emitido na atmosfera, sendo que os veículos leves contribuem com 68% das emissões desse segmento.

Em abril do ano passado, a EPA tinha determinado que dois terços dos carros e caminhões leves zero quilômetro à venda em 2030 deveriam ser elétricos. Os executivos e revendedores do setor automotivo fizeram forte lobby e conseguiram uma implementação mais lenta.

As novas regras passaram a ser aplicadas para veículos leves – carros, veículos utilitários esportivos e a maioria das picapes – para modelos lançados de 2027 a 2032, que determinam a quantidade de dióxido de carbono que os novos veículos podem emitir, bem como poluentes como óxidos de nitrogênio.

Para atingir as metas para os modelos lançados em 2030, por exemplo, estima-se que 31% a 44% das vendas de novos veículos leves terão de ser elétricos. No entanto, para os modelos lançados em 2032, a EPA manteve o objetivo originalmente proposto - que os EVs e híbridos representem o equivalente a 67% das vendas de veículos novos.

A agência ambiental acredita que a indústria poderia atingir o limiar de emissões com uma menor penetração de EVs se combinada com vendas de híbridos plug-in, numa proporção de 56% de carros elétricos e 13% de híbridos plug-in. Isso evitaria mais de sete bilhões de toneladas de emissões de dióxido de carbono nos próximos 30 anos, segundo a EPA.

O tema da redução de emissões por meio dos carros americanos deverá ocupar papel central na campanha presidencial americana. Biden estima que a nova regra dá ao país mais chances de cumprir a meta do governo de reduzir as emissões dos EUA pela metade até 2030 e eliminá-las até 2050.

O pré-candidato republicano Donald Trump, porém, vem fazendo uma campanha ruidosa contra os EVs, que segundo ele, representam uma ameaça existencial para a indústria automobilística americana, sobretudo porque são um substituto para a concorrência econômica com a China.

Ou seja, se vencer a eleição, Trump ameaça derrubar ou dificultar a aplicação da legislação aprovada pela EPA.