Um vinho de qualidade produzido em meio à agitação das grandes metrópoles pode soar heresia. É compreensível. Muita gente ainda associa a elaboração da bebida aos cenários bucólicos de propriedades rurais, onde os vinhedos crescem longe da poluição, do barulho e do vaivém frenético pelas ruas e avenidas.
Nos últimos anos, porém, as chamadas vinícolas urbanas vêm ganhando o asfalto, seja nos Estados Unidos, na França, na Inglaterra, na Austrália... ou aqui mesmo, no Brasil. E, aos poucos, conquistam os enófilos e ganham o respeito de enólogos.
O segredo para produzir bons vinhos está na seleção das uvas, no cuidado com o processo de vinificação, na definição das melhores proporções de corte (mistura entre diferentes uvas) — e não exatamente na localização geográfica onde essa elaboração acontece.
Do Vinhedo Lacustre, em Brasília, é possível avistar a Esplanada dos Ministérios e a Praça dos Três Poderes. Dentro do perímetro urbano da cidade, em um terreno no Lago Norte, a menos de 10 minutos do Plano Piloto, com a consultoria do enólogo Carlos Sanabria, o arquiteto Marcos Ritter cultiva 1,5 mil parreiras. Entre as castas semeadas estão Syrah, Pintotage, Merlot e Cabernet Sauvignon .
As primeiras mudas foram plantadas em 2010, pelo ortopedista Odelmo Ritter. E o que era para ser um hobby se tornou um negócio pelas mãos do seu filho Marcos.
“Nosso maior desafio é mostrar que podemos fazer bons vinhos porque algumas pessoas pensam que, por estarmos na cidade, não estamos bem-preparados”, conta o enólogo, em conversa com o NeoFeed. “O bom é que quando fazem a degustação, acabam valorizando nosso trabalho. Por sermos produtores pequenos, conseguimos dar mais atenção, desde o cultivo de nossas uvas até a finalização do processo de vinificação.”
A Lacustre produz cerca de 5 mil garrafas por ano e oferece atividades típicas dos vinhedos tradicionais, como degustações, visitações e piquenique no vinhedo.
Na agitação paulistana
Um dos empreendimentos mais recentes fica em um discreto casarão de Pinheiros, bairro paulistano famoso por sua badalação. Batizado Vinícola Urbana, o negócio é comandado por Daniel Colli. Na Europa para estudar economia, ele se apaixonou pela gastronomia e, em seguida, pela enologia.
De volta ao Brasil, em 2018, ele decidiu ter seu próprio parreiral. Comprou um pedaço de terra em Cunha, no interior de São Paulo, e começou a cultivar suas próprias uvas. O portifólio da Urbana é composto pelas castas colhidas no terroir paulista e uvas vindas de produtores da da Serra Gaúcha e do Nordeste.
Todo o processo de vinificação acontece no casarão de Pinheiros. Entre os rótulos das 20 mil garrafas produzidas por ano, estão o Jovem, feito com as uvas Tannat, vinho tinto em que é utilizada a maceração carbônica combinada com a leve extração das cascas das uvas vindas do Rio Grande Sul, e o Pilar Branco, um blend de Alvarinho e Sauvignon Blanc, provenientes de Cunha e fermentadas em barrica de carvalho francês.
Para Colli, uma das vantagens em produzir vinhos na cidade é estar em contato permanente com um público variado e não apenas com os adeptos do enoturismo. “Isso nos dá a possibilidade de entender cada vez mais o que é esperado dos nossos vinhos e sidras”, diz ele, ao NeoFeed. “Além disso, podemos saber até que ponto as nossas apostas mais arriscadas podem ajudar a abrir fronteiras do paladar das pessoas.”
Um dos pioneiros na produção comercial de vinhos urbanos é o americano Steve Edmunds, de 69 anos. Em 1986, ele fundou a Edmunds St., em Berkeley, na Califórnia. Entre os 13 rótulos, estão vários vinhos produzidos com frutas de vinhedos localizados na região, sobretudo em Sonoma e El Paso Robles, famosas pela qualidade de suas uvas.
No entanto, a ideia que deu origem às vinícolas urbanas é mais antiga. No início do século 20, antes da lei seca nos Estados Unidos, por exemplo, algumas famílias — especialmente as de imigrantes —preparavam seu próprio vinho nos porões de suas casas com uvas que vinham de parreirais cultivadas nos arredores de suas residenciais. Por vezes, até no fundo de quintal.
Aliás, essa era uma prática comum em vários países, numa época em que as cidades, mesmo as metrópoles, não haviam passado pelo intenso processo de urbanização. Inclusive, no Brasil.
4 mil garrafas em Porto Alegre
É o caso de Januário Greco. Imigrante italiano, na década de 1930 ele tinha um parreiral e produzia seu próprio vinho em Porto Alegre, em sua residência na Avenida Independência, que à época era uma região de grandes casas habitadas por famílias tradicionais.
Greco, de certa forma, acabou servindo de inspiração para seu bisneto, o engenheiro Eduardo Gastaldo, apreciador de vinhos que decidiu estudar e se aprofundar na arte da vinificação.
Com ajuda de enólogos e vinhateiros conhecidos, ele iniciou, em 2017, a primeira produção de vinhos para desfrutar da bebida com a família e com os amigos. O sucesso foi tanto que, em 2019, ele fundou a Ruiz Gastaldo, a primeira vinícola urbana do Brasil.
Lá, na Chácara das Pedras, bairro residencial nobre de Porto Alegre, são elaborados espumantes pelo tradicional método Champenoise — em que é feita a segunda fermentação dentro da própria garrafa, com controle da pressão —, e os chamados vinhos tranquilos, que passam por um processo de fermentação natural e não possuem gás carbônico em sua composição.
As uvas usadas na vinificação são Cabernet Franc, Cabernet Sauvignon, Pinot Noir, Chadornnay e Teroldego, uma casta italiana cultivada há centenas de anos na região do Trentino e que, aos poucos, está sendo resgatada no Brasil
A Ruiz Gastaldo produz, em média, 4 mil garrafas por ano. Os vinhos são processados com uvas cultivadas por seis vinhedos parceiros que ficam em diferentes terroirs do Rio Grande do Sul.
“Vamos buscar cada tipo de casta nas regiões em que ela melhor se expressa e acompanhamos de perto o seu cultivo, tendo a liberdade de definir o momento ideal da colheita”, explica Gastaldo, em entrevista ao NeoFeed.
Como conta, as uvas chegam à sua vinícola, muitas vezes, em melhores condições do que as que vão para os vinhedos tradicionais.
“Nossa colheita é realizada nas primeiras horas da manhã e o transporte é feito em caminhões refrigerados. Em, no máximo, duas horas e meia, elas chegam à cidade em temperaturas abaixo de 10º C e já são processadas, garantindo frescor”, diz.
E ele completa, com satisfação: “Como a elaboração dos vinhos acontece no subsolo da minha casa, acordo às cinco e meia da manhã e cuido de cada etapa da vinificação. Eu passo o dia com os vinhos.”