O setor varejista mal saiu de uma guerra para exigir a cobrança de impostos de peças de vestuários importadas da China, a chamada “taxação das blusinhas chinesas”, e já está às voltas contra outra ameaça às vendas do varejo: a concorrência com as apostas oferecidas pelas 300 plataformas online que atuam no País, as chamadas bets.

Os dados são assustadores. Pesquisa da Hibou com 2.839 pessoas, em agosto deste ano, mostra que a despesa mensal do brasileiro com apostas online está entre R$ 100 e R$ 500. O hábito está particularmente arraigado nas classes C, D e E – onde 79% de seus integrantes apostam regularmente.

De acordo com o Banco Central, cinco milhões de beneficiários do Bolsa Família destinaram R$ 3 bilhões às bets apenas em agosto. Esse montante corresponde a 21% do total de R$ 14,1 bilhões desembolsado pelo governo federal no programa de transferência de renda.

Do lado das plataformas online, só em 2023 elas arrecadaram entre R$ 60 bilhões e R$ 100 bilhões em apostas. Desse total, cerca de R$ 40 bilhões deixaram de ser gastos com bens e serviços. Para 2024, segundo estudo da Strategy&, consultoria estratégica da PwC, a projeção é que as bets arrecadem até R$ 130 bilhões – o dobro das vendas registradas em 2023 pela Magazine Luiza, uma das gigantes do varejo.

Jorge Gonçalves Filho, presidente do Instituto para Desenvolvimento do Varejo (IDV), que completa 20 anos, conta que a entidade que congrega empresas varejistas de diversos setores começou a se preocupar com o impacto causado pelas bets ao notar uma queda de consumo em alimentação e vestuário, seguido de relatos de associados sobre as dificuldades financeiras de funcionários com apostas.

“Começamos a analisar os efeitos, não só do desvio de finalidade do dinheiro usado nas bets, mas também a questão de saúde pública, pois virou um vício”, diz Gonçalves, nesta entrevista ao NeoFeed.

Depois de consultar a Febraban, o IDV descobriu uma inadimplência de 2 em cada 3 faturas de cartões de crédito de clientes que apostam online. Diante desse quadro, Gonçalves conta que aproveitou a presença do vice-presidente Geraldo Alckmin no evento de 20 anos de fundação do IDV, no final de agosto, para apresentar o problema.

Desde então, foram mais duas reuniões com o vice-presidente, a última na segunda-feira, 23 de setembro. “Pedimos uma regulamentação mais firme, pois as propagandas das bets estão 24 horas na TV e nas mídias sociais, uma taxação maior, hoje em 12%, e que as bets banquem o tratamento para livrar o vício de apostadores, pois essa conta vai cair no SUS”, diz ele.

Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista de Gonçalves ao NeoFeed:

O IDV tem advertido riscos associados ao crescimento das plataformas eletrônicas de apostas, conhecidas como bets. O que preocupa mais o segmento?
Começamos a acompanhar esse efeito das bets internamente, com associados relatando dificuldades financeiras de funcionários com apostas e outros efeitos. Surgiu uma faísca e passamos a acompanhar várias pesquisas, indicando que o problema já estava crescendo de forma exponencial.

Os gastos com apostas afetaram o varejo?
Sim, detectamos por pesquisas que um volume de recursos significativos, que deveriam estar indo para o consumo, como alimentação e vestuário, estavam indo para outro negócio. Passamos a consultar outros setores e soou um alerta que já não era amarelo, e sim vermelho.

O problema atinge a economia como um todo?
Sim, a Febraban também estava preocupada, pois descobriu que, de cada três faturas de cartão de crédito de clientes que apostam em bets, duas não estavam sendo quitadas. Com base nos dados do Banco Central, o Itaú divulgou que os gastos com apostas haviam chegado a R$ 68 bilhões em 2023 e devem atingir R$ 120 bilhões este ano. Começamos a analisar os efeitos, não só do desvio de finalidade do dinheiro usado nas bets, mas também a questão de saúde pública.

"De cada três faturas de cartão de crédito de quem aposta em bets, duas não são quitadas"

Como o IDV passou para a ação para lidar com o problema?
Pegamos todas as pesquisas que tínhamos reunido e aproveitamos um evento de 20 anos de criação do IDV, voltado para debater vários assuntos de interesse do varejo, em Campos de Jordão, no fim de agosto, para discutir o problema. O vice-presidente Geraldo Alckmin estava presente e quando abordamos a questão das bets mostramos os dados que havíamos levantado. Um deles indicava que 79% da população das classes C, D e E estavam apostando fortemente em bets, deixando inclusive de comprar comida ou fazer outros gastos essenciais.

O vice-presidente ficou surpreso?
Ele ficou preocupado e sugerimos coletar material de diversas fontes, não só de pesquisas, como de outras associações, e mostrar a ele numa reunião em Brasília. Nesse período, apareceram vários dados novos, um deles envolvendo educação. Foi feita uma pesquisa com 10 mil estudantes mostrando que 12% deles não estão refazendo matrícula, usando o dinheiro para apostar.

O que o IDV sugeriu para atacar o problema?
Levamos ao vice-presidente Alckmin, na segunda-feira, 23 de setembro, um vasto material com sugestões de pontos a melhorar. Um deles é a legislação, que é muito fraca. Um exemplo é a publicidade. Na TV, são 24 horas por dia de campanhas publicitárias de apostas, estreladas por influenciadores e artistas, incluindo patrocínio dos clubes de futebol. Tudo o que atrai o jovem está tomado pelas bets. Elas estão criando uma legião de pessoas que está gastando todo o o salário para apostar. Temos exemplos de casais que se separaram, de pessoas que perderam tudo e estão devendo para agiotas. Também chamamos a atenção para outros problemas.

"Tudo o que atrai o jovem está tomado pelas bets. Elas estão criando uma legião de pessoas que está gastando todo o salário para apostar"

Quais?
Falamos da penetração nos meios digitais. Todo mundo passa o dia inteiro recebendo no celular sugestões de bets, inclusive oferecendo uma quantia para apostar. Isso precisa ser contido, tanto nos celulares quanto nas mídias digitais – isso foi levantado pelo próprio Alckmin. A ludopatia, que é o vício em apostas, chegou nas bets e virou um problema de saúde pública. Essa doença vai crescer e quem vai ter de lidar com ela é o SUS. Alertamos o vice-presidente que isso deveria ter uma responsabilização direta das bets pelo tratamento dessas pessoas.

Mas uma parte de arrecadação das bets não é direcionada para a saúde?
Sim, mas precisamos obrigar as casas de apostas a bancar diretamente esse tratamento, como ocorre na Inglaterra. Também abordamos com o vice-presidente a questão da tributação. As bets pagam 12% de imposto. Qualquer produto que compramos de uma empresa vem com carga tributária de 40% a 50%. Ou seja, precisamos trocar algo que é tributado em 12% por algo que deveria ser tributado quatro vezes mais, pois é consumo. O governo também está perdendo esse dinheiro. Na reforma tributária, as bets deveriam ser incluídas na alíquota diferenciada, com tributação semelhante a cigarro e bebida, de alíquota cheia.

Como o governo federal recebeu essas propostas?
A lei das bets foi aprovada no governo Michel Temer, em 2018, mas só agora o atual governo buscou sua regulamentação. Reconhecemos isso, mas o fato é que a regulamentação é muito fraca, pouco contundente para um problema tão sério. Soubemos que a proibição de apostar pagando com cartão de crédito, que só entraria em vigor em 2025, vai se antecipado para esse ano. Mas é preciso atacar outros temas, como a publicidade. É preciso acionar o Procom para checar se há publicidade enganosa, e limitar o tempo de propaganda na TV. Isso tem de ser feito já, não dá para esperar janeiro do ano que vem. O estrago pode se irreversível.

"A regulamentação das bets é muito fraca, pouco contundente para um problema tão sério"

O vice-presidente acenou com alguma ação?
Na verdade, o governo federal se mostrou interessado com algo que já vinha tratando há algum tempo, como a tributação, pelo Ministério da Fazenda. Mas há temas correlatos que dizem respeito ao Ministério da Justiça, como o Procon, ou Ministério da Saúde. Ou seja, precisa ser ampliada a abordagem ao tema bets.

Como envolver o Congresso Nacional nessa discussão?
Há um projeto de lei em tramitação no Senado que trata da liberação de cassinos. Mas é preciso tomar cuidado: no texto, sem perceber e de forma subliminar, foi incluída a liberação de bingos e de máquinas caça-níqueis. Cassino é uma coisa, cria empregos, é formal, etc. Mas essas máquinas caça-níqueis são que nem as bets, se o governo não ficar atento vai ter em toda esquina. Sabemos que o jogo está aí, é uma realidade, mas precisa ser tratado com mais restrições para que não prejudique a saúde das pessoas nem a economia do País.

O Brasil está com uma economia aquecida, com o mercado de trabalho a pleno vapor. A despeito do impacto das bets, o varejo está notando esse crescimento do PIB no consumo?
Não está correspondendo como um todo. Alguns setores campeões, como farmácia, pets e artigos de perfumaria, estão bem. Mas outros setores, como linha branca e materiais de construção, estão sofrendo. Não estão tendo aquele crescimento esperado, que deveria ser muito grande, porque o governo injetou dinheiro na economia e a renda está crescendo mais. Os R$ 100 bilhões, que é o que se espera para serem colocados nas bets este ano, atrapalham e fazem falta ao varejo.

A taxa Selic mais alta também atrapalha esse cenário?
Sim, mas é preciso olhar o todo. Os juros atrapalham, por exemplo, no capital de giro. Quando o lojista faz uma compra para o estoque, ele tem de financiar com juros em alta, ou seja, está descontando aquele recebível e pagando mais caro. Isso obriga o varejo a ser mais restritivo na oferta de parcelas. Sem falar na inadimplência, que é maior com juros altos.

“A taxação das blusinhas chinesas aprovada ainda está longe da equidade tributária”

Antes das bets, o varejo viveu outra guerra, no caso, a taxação das blusinhas chinesas. A taxação definida (imposto de importação com alíquota de 20%, além da alíquota de 17% de ICMS) foi considerada suficiente para o setor?
Não foi considerado suficiente, embora seja preciso entender e agradecer os esforços do ministro da Fazenda, da Câmara e do Senado. Porém, todos sabemos que a aprovação final, com as alíquotas definidas, foi apenas o primeiro passo. Precisamos chegar na equidade tributária, que estaria num nível de 80% - e temos hoje um total de 44,6% de tributação. Não chegamos nem o que era antes, de cerca de 60%. Ou seja, passou um pouco da metade do que é necessário.

O quer seria preciso para atingir pelo menos os 60%?
Esse próximo degrau significa dar um pequeno aumento no ICMS, um pequeno aumento da alíquota de importação, porque eles são compostos, para chegar a 60% ainda este ano. Os estados sabem que 17% de ICMS é pouco e precisam arrecadar mais. Estamos conversando com as secretarias de Fazenda estaduais, mas estamos num período de eleição.

O IDV chegou a calcular o impacto para o setor antes da taxação das blusinhas chinesas?
As empresas, principalmente de vestuário, tiveram redução forte nas vendas e no resultado, as ações caíram, lembrando que essa queda nas ações teve impacto também no valor das empresas. Então foi muito ruim para o setor, do pós-pandemia até a taxação atual.

Qual foi a avaliação do IBV sobre o projeto de regulamentação de reforma tributária aprovado?
Olhando pelo lado do IDV, um instituto que quer ajudar na formalização da economia, pode ser positivo, desde que tenha uma boa implantação. Estamos com 26,5% de alíquota do IVA. Se a regulamentação não for feita corretamente, pode tornar o País com o de maior sonegação do mundo. O risco é uma “rachadinha” – dos 26,5%, fica 13,25% para mim e 13,25% para você, fazemos esse desconto e não pagamos o imposto. Por isso precisamos ficar atentos à implementação, para que todos paguem o que é devido.