Terceira mulher no Brasil a se formar engenheira civil, a sul-mato-grossense Carmen Portinho (1903-2001) foi a criadora do Departamento de Habitação Popular da prefeitura do Rio de Janeiro, em 1948, então capital do país. E, uma de suas ações inaugurais no cargo foi a construção do conjunto residencial Prefeito Mendes de Moraes, o Pedregulho.

Carmen foi responsável pelo programa do complexo habitacional, que deveria “contar com serviços coletivos, como lavanderias comunitárias, que libertassem as mulheres das sobrecargas dos trabalhos domésticos”, como descreve a arquiteta argentina Zaida Muxí Martínez, no recém-lançado livro Mulheres, casas e cidades, da editora Olhares.

Na obra,  Zaida resgata a memória de mulheres cujo pensamento e cuja produção na arquitetura e no urbanismo foram apagados ou relegados a um segundo plano pela historiografia oficial. Nesse contexto, Carmen é um caso exemplar entre as brasileiras.

A engenheira civil também capitaneou as obras do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, entre 1954 e 1967, quando também ocupava o cargo de diretora adjunta da instituição.

No entanto, quando falamos de MAM Rio e também do Pedregulho, frequentemente, vêm à lembrança os nomes de Affonso Eduardo Reidy (1909-1964), um dos maiores nomes da arquitetura modernista brasileira, e do paisagista Roberto Burle Marx (1909-1994), partícipes de ambos os projetos.

A propósito, Carmen e Reidy foram um casal por cerca de 30 anos, sem nunca terem se casado oficialmente. A ideia de uma mulher profissional à sombra dos homens, não raro seus maridos, é recorrente no livro de Zaida.

Sem educação formal como arquiteta, a irlandesa Eileen Gray (1878-1976) foi responsável pelo projeto da casa modernista E-1027, construída entre 1926 e 1929, em Roquebrune Cap-Martin, na França, assim como de seu mobiliário.

No entanto, por muito tempo se atribuiu ambos a Le Corbusier (1887-1965), somente porque o arquiteto suíço pintara um de seus famosos murais no balneário francês e, ao publicá-los no livro Oeuvre Complète (1946) e na revista L’architecture d’aujourd’hui (1948), mencionara a casa sem dar os devidos créditos a Eileen.

"Não existiam mulheres antes de nós?"

Em certos casos, Zaida considera que as arquitetas que ficaram à sombra de seus maridos como estratégia para se manterem em atividade, mesmo que tivessem filhos, como é o caso da finlandesa Aino Aalto (1894-1949) e seu parceiro Alvar Aalto (1898-1976).

“Não iam aos ateliês trabalhar, mas à noite, em casa, comentavam os projetos, faziam desenhos nas plantas e diziam suas opiniões. Então essas mulheres estiveram presentes nos projetos destes arquitetos, mas depois a história não as reconhece”, escreve a autora.

Em entrevista ao NeoFeed, Zaida conta que iniciou sua investigação para o livro, em 2002, quando, durante uma pesquisa na biblioteca da Universidade Columbia, nos Estados Unidos, questionou-se: “Onde estão as mulheres? Não existiram mulheres antes de nós?”.

Como vive em Barcelona, prosseguiu com seu levantamento na Espanha, na Grã-Bretanha e na Finlândia, para somente depois chegar às Américas do Norte e do Sul.

A argentina ressalta que não colocou a palavra arquitetas no título do livro porque buscou, em sua pesquisa, “mulheres que propuseram melhorias em seu habitat, ou seja, a casa, a cidade”, conta.

Uma delas, lembra Zaida, foi a norte-americana Melusina Fay Peirce (1836-1923), que, na segunda metade do século 19, teria proposto moradias sem cozinhas, pois “as tarefas domésticas pressupunham uma monotonia diária e uma pressão para as mulheres que queriam seguir com suas ambições pessoais”.

A arquiteta argentina Zaida Muxí Martínez memória de mulheres cujo pensamento e cuja produção na arquitetura e no urbanismo foram esquecidos pela historiografia oficial (Foto: Divulgação/Editora Olhares)

Carmen Portinho capitaneou as obras do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, mas quando se fala na instituição os nomes que vêm à lembrança são do arquiteto Affonso Eduardo Reidy e do paisagista Roberto Burle Marx (Foto: Divulgação/Editora Olhares)

Uma das primeiras mulheres formada em arquitetura, no início do século 20, a austríaca Margarete Schütte-Lihotzky se interessava por tudo que envolve a vida diária, não somente na casa, mas na cidade (Foto: Austrian Cultural Forum of New York)

Construída entre 19927 e 1927, a casa modernista E-1027, no litoral da França, é da a irlandesa Eileen Gray — e não de Le Corbusier (Foto: reprodução Instagram @capmoderneuk)

Com 316 páginas, o livro "Mulheres, casas e cidades" custa R$ 99 (Foto: divulgação/Editora Olhares)

Outro exemplo do século 19 é a inglesa Octavia Hill (1838-1912) que, diante das condições insalubres das chamadas slums de Londres, posicionou-se contra a demolição e realocação de famílias da classe operária como solução para o problema.

“O que ela propunha era melhorar as condições de vida das mulheres e de suas famílias e, em alguma forma, de elas trabalharem juntas”, diz Zaida. “Para mim, esse pensamento é precursor do que vemos nos planos de reabilitação e renovação de favelas. E é um exemplo que parte de uma experiência privada, da casa, e atinge um impacto coletivo, na cidade.”

Essa lógica também fez parte da trajetória de umas das primeiras mulheres com educação formal, universitária, em arquitetura, como a austríaca Margarete Schütte-Lihotzky (1897-2000). “Ainda estudante, ela se interessa por tudo que envolve a vida diária, não somente na casa, mas na vizinhança, na escola, nos equipamentos de saúde”, diz Zaida.

“E Margarete começa a trabalhar com populações de baixa renda de cidades austríacas, ou mesmo de Viena, que enfrentam grandes deslocamentos para trabalhar nas fábricas porque não há habitações o suficiente onde elas estão instaladas”, completa a autora.

A partir dessa experiência, a arquiteta austríaca viria a propor, num zeitgeist transatlântico com o pensamento de Melusina, programas habitacionais públicos que não contemplavam cozinhas.

“Se todos os adultos trabalham fora, numa fábrica, por que alguém terá de voltar para casa e ter outro turno de trabalho que envolva cozinhar”, questiona Zaida. “Elas estiveram por trás de uma proposta de cozinha coletiva com pessoas encarregadas de preparar as refeições, que seriam consumidas pelos operários em casa ou em um refeitório comunitário.”

Ao citar a arquiteta italiana radicada no Brasil Lina Bo Bardi (1914-1992), a autora destaca que seu projeto expositivo para o Museu da Arete de São Paulo (Masp)  não pressupunha uma hierarquia e que “o tempo da história e da arte ocidental se transforma em um tempo presente, onde tudo está junto, sem início nem evolução temporal, refletindo o impacto de milhares de anos de evolução de diferentes culturas que se superpõem em um único momento, em um mesmo lugar, numa colisão cultural”.

Apesar da importância de Lina para a arquitetura brasileira — também são de sua autoria os projetos do Sesc Pompeia, do Museu de Arte Moderna da Bahia, entre outros —, ela é um exemplo de arquiteta cujo devido reconhecimento só viria postumamente. E que, agora, junto com Carmen, Eileen, Aino e Margarete, têm suas histórias contadas por Zaida.