Bacon, queijo, tahine, manteiga, óleo de coco, azeite... esses e muitos outros ingredientes comuns na gastronomia estão saindo das panelas e transformando o modo como os drinques são elaborados. A inovação só é possível graças à técnica fat-wash ou fat-washing — tendência que, pouco a pouco, vem se expandindo no mundo da mixologia.
O processo consiste em infundir destilados com gorduras derretidas ou maceradas. Ao serem resfriados, os resíduos sólidos são removidos, mas deixam na bebida uma textura aveludada e camadas complexas de sabor e aroma.
A versatilidade do fat-washing permite a utilização de uma ampla gama de insumos. “Carnes como bacon e porco defumado e gordura de pato adicionam notas salgadas e umami”, explica Rodolfo Bob, consultor do Bar Secreto, na capital paulista, em entrevista ao NeoFeed. “Os azeites regulares e os aromatizados, como o trufado, podem oferecer notas surpreendentes para a bebida.”
Já a manteiga noisette, por exemplo, confere um toque de tostado e caramelizado, além de possibilitar a adição de polpas de frutas, como maracujá ou morango. E algumas versões vegetais do ingrediente, como a de garrafa ou a ghee, podem trazer um leve amargor.
Vencedor do prêmio de melhor drinque com Tequila Don Julio na World Class 2023, Rodolfo tem entre suas criações o já famoso Buttery Bacuri. Uma combinação de gin com fat-wash de manteiga de garrafa e bacuri (fruta amazônica aromática, com gosto adocicado e levemente ácido), adicionado a vermute com um toque sutil de xarope triplo (feito à base de agave, açúcar demerara e perfume de pastis).
A origem do fat-wash remonta ao Benton’s Old Fashioned, drinque criado em 2007, no famoso bar PDT (Please Don’t Tell), em Nova York.
No início, quando Don Lee, mixologista, engenheiro de software e um aficionado por carnes suínas, juntou bourbon com bacon, a equipe teve dificuldade para aceitar a ideia.
Mas desde então, a bebida se tornou um hit da casa e marcou a história da mixologia.
Rapidamente, a tendência ganhou bares mundo afora. No Quinary, de Hong Kong, presença constante nas listas dos melhores bares da Ásia, oferece o Siu Ap, inspirado na culinária cantonesa e combina rum lavado com gordura de pato, mel e molho de ameixa.
Os sabores brasileiros
No Brasil, claro, não seria diferente. Os "drinques gordos" conquistam mais e mais apreciadores.
No Santana Bar, em São Paulo, Vinícius Demian, que já trabalhou no renomado Le Syndicat, em Paris, — um dos 50 melhores bares do mundo — e foi eleito o melhor bartender do Brasil, em 2022, criou o coquetel Sô.
O drinque é elaborado com uísque Singleton lavado com pasta de amendoim, Baileys com manteiga, Amaro, doce de leite e queijo minas. Outro destaque de Vinícius é o Animador, um coquetel que combina cachaça com manteiga de garrafa. “Gosto de criar bebidas com sabores brasileiros que trazem conforto e memórias, além de texturas ricas”, conta Demian, ao NeoFeed.
Ale Bussab, mixologista e sócio do Trinca Bar & Vermuteria, ponto de encontro de bartenders e entusiastas da coquetelaria, também usa o fat-wash em alguns de seus coquetéis para ampliar o mapa de sabores.
Entre suas criações está o PeanutCilin, que mistura uísque, pasta de amendoim, mel e cambuci, fruto típico da Mata Atlântica conhecido por seu sabor ácido e amargo. “O desafio é trazer notas de amendoim apenas no final, sem sobrecarregar o paladar”, explica ele, ao NeoFeed.
No Bar Oculto, um speakeasy de São Paulo, a bartender Cris Negreiros combina sofisticação e criatividade na coquetelaria, usando a técnica de fat-washing em alguns de seus drinques. Um exemplo é o (Almost) Dirty Martini, feito com gin London Dry e azeite.
“A secura clássica do martini é mantida, mas a leveza untuosa do azeite leva a bebida a uma nova dimensão”, afirma, ao NeoFeed.
Outra criação de sucesso é o Velvet Snapper, versão do clássico Red Snapper, onde a diferença está na técnica fat-wash com azeite para suavizar e harmonizar os sabores picantes e ácidos do drinque, cuja receita inclui gin, suco de limão siciliano e especiarias.
Há de se ter paciência
Para criar coquetéis com a técnica de fat-washing, é necessária uma fonte de calor para liquefazer a gordura. Também é recomendado o uso de um recipiente de boca larga para armazenar a mistura de destilado e gordura durante o processo de infusão. Não pode faltar, é claro, o refrigerador para esfriar o mix e solidificar a gordura, nem o filtro para separar a gordura e os resíduos da bebida após o resfriamento.
É imprescindível ingredientes de qualidade e bebidas com alto teor alcoólico.
“O álcool é o condutor dessa extração de aroma e sabor; quanto maior a concentração, melhor o resultado. Por isso, recomenda-se o uso de destilados”, explica a bartender Michelly Rossi, a Mia Rossi, diretora da Fábrica de Bares, empresa especializada em consultoria e gestão de bares e restaurantes, que tem sob administração casas o Riviera e o Bar dos Arcos. “Com a filtragem correta, extraímos apenas os sabores e aromas desejados, mantendo a textura aveludada no drinque”, completa ela, ao NeoFeed.
Apesar de relativamente simples, o método exige paciência. No preparo do clássico Bacon Old Fashioned, por exemplo, a gordura do bacon fica infusionada no bourbon por cerca de quatro horas no congelador. Mas há drinques que precisam de até dois dias no freezer.
Até chegar à mistura perfeita, é preciso testar muito — realmente muito. “Mais do que adicionar sabor, o fat-wash deve elevar a experiência sensorial sem comprometer a essência da bebida original”, destaca Mia. “Por isso, encontrar a medida certa da quantidade de gordura é um dos maiores desafios, pois o excesso pode mascarar os outros ingredientes.”
Versão líquida da haute cuisine
Considerando todos os cuidados envolvidos no fat-washing, não é exagero afirmar que a técnica está aproximando a coquetelaria contemporânea da haute cuisine.
“Esse processo permite criar experiências únicas que envolvem o paladar de forma completa, como uma verdadeira "gastronomia líquida",' explica Arthur Mondin, coordenador do curso de bartender da Associação Brasileira de Sommeliers — São Paulo, em conversa com o NeoFeed.
Para ele, a possibilidade de explorar o umami, o “quinto gosto básico”, nos drinques é uma das razões pelas quais bartenders estão cada vez mais interessados e consumidores, mais curiosos. Como diz Mondin: “Hoje, o público está atento e exigente, em busca de experiências sensoriais completas, o que os leva a valorizar bebidas que se conectam com a gastronomia de maneira inovadora”.