No Brasil dos paradoxos, onde a comida jogada fora equivale a oito vezes a quantidade necessária para alimentar quem tem fome, 65% das frutas, legumes e verduras produzidos apenas no estado de São Paulo têm o lixo como destino.

Delicados e sensíveis à ação do tempo e das condições climáticas, os vegetais estão entre os alimentos que deterioram mais depressa. Às vezes, eles nem apodreceram, mas ficaram “feios” para exposição nas gôndolas dos supermercados e nas bancas das feiras... em ambos os casos são descartados.

Grande parte do problema está na falta de planejamento preciso de o que comprar e quando. A solução mais óbvia é também a mais arriscada — pelo menos, do ponto de vista, do negócio. Comprar menos significa vender menos. E isso ninguém quer.

Com o propósito de ajudar o varejo a “comprar certo e não menos”, o economista Marco Perlman, em parceria com os engenheiros Bruno Schrappe e Aline Azevedo, fundou, em 2022, a startup Aravita. O trio desenvolveu uma plataforma de inteligência artificial (IA), capaz de fazer a gestão de hortifrutis, reduzindo o desperdício em 20%.

“Se o varejista cortar demais, pode atrapalhar a jornada do consumidor”, diz ele, CEO da foodtech, em conversa com o NeoFeed. “Aí, ele passa a ter um problema.”

Modelos avançados de deep e reinforcement learning fazem o cruzamento de uma série de variáveis, com uma precisão e rapidez que nós, humanos, jamais conseguiríamos alcançar.

Para chegar às quantidades ideais de frutas, legumes e verduras, os algoritmos da Aravita analisam a previsão de consumo de determinado produto e sua quantidade em estoque; as datas de entrega e o histórico dos fornecedores. É tudo uma questão de matemática.

Uma aritmética complicadíssima, cujas equações são determinadas por fatores específicos — aparentemente incombináveis entre si. As condições meteorológicas do momento, por exemplo, indicam o tipo de alimento mais consumido: ingredientes para saladas e frutas saem mais em dias de calor; enquanto produtos mais usados no preparo de sopas, como batata e lentilha, em tempos de frio.

Já o período do mês em que a maioria dos clientes de uma loja recebe o salário indica a época das maiores compras — dinheiro na conta é sempre sinônimo de carrinho mais farto.

Até o sentido da rua onde o comércio está localizado é levado em consideração. Se for na direção centro-bairro, as vendas tendem a acontecer no final da tarde, quando as pessoas do trabalho em direção às suas casas. Da análise conjunta de parâmetros como esse, emergem o período e quantidade de hortifrutis a ser comprada.

Rua alagada

Os relatórios emitidos pela Aravita são diários e consideram até imprevistos. Caso um temporal alague a rua onde fica o mercado, por exemplo, a IA sugere que, no dia seguinte, muito provavelmente, as vendas serão fracas. “A gente recomenda a partir de quando o varejista pode voltar a comprar o produto”, explica o cofundador da startup. Até porque o aplicativo também informa a partir do momento em que aquela fruta, verdura ou legume deve estragar.

Inicialmente, o foco da empresa são os supermercados com faturamento acima de R$ 1 bilhão. “Eles têm os dados mais organizados do que qualquer outra parte da cadeia de abastecimento”, afirma o executivo. “Quanto menor a loja, mais difícil acertar, já que muitas vezes as informações não são completas.”

Hoje a tecnologia da Aravita está presente na rede St. Marche, que entrou com um pedido à Justiça de São Paulo para suspensão temporária do pagamento de dívidas e para proteger a companhia contra medidas de cobrança de credores financeiros, passo antes de um pedido de recuperação judicial.

Hoje, 33 lojas espalhadas pela capital paulista, municípios da região metropolitana de São Paulo, Campinas, no interior do estado, e Santos, no litoral, usam a tecnologia da Aravita.

O mundo desperdiça, em média, 45% dos legumes, frutas e verduras produzidos, informa a FAO, a agência para a alimentação e agricultura da ONU

Sediada em Seattle, a Strella Biotech criou um sistema de IA que indica o momento ideal para o consumo de cada fruta (Foto: Strella Biotech(

Mark e Aislin Kirwan, da Positive Carbon, de Dublin, criam uma espécie de "Big Brother das cozinhas comerciais" (Foto: Positive Carbon)

Desde o início da parceria, em abril de 2023, o índice de aceitação das recomendações apresentadas pela Aravita ultrapassou a marca de 80%, diz Perlman. No restante dos casos, os funcionários responsáveis pela compra alteraram a indicação da IA, já que a palavra final é sempre da unidade compradora. “É muita decisão que acontece todo dia”, explica o cofundador.

Além da queda no volume de desperdício, a tecnologia da Aravita ajudou a reduzir em 30% o índice de ruptura — quando uma venda é perdida pela falta do produto em loja. A IA avalia entre 500 a 800 itens diferentes, por loja.

Recentemente, a empresa iniciou um projeto piloto com uma outra rede de supermercados, em um modelo diferente do adotado no St. Marche.

“Nesse caso, o pedido é centralizado e o estabelecimento negocia diretamente com o fornecedor. Então, a gente leva a recomendação para essa central de compras”, explica o CEO da Aravita, sem revelar o nome do novo cliente. “Também está funcionando.”

A primeira captação da startup aconteceu em março de 2023: US$ 2,5 milhões, em um aporte liderado pela americana Qualcom Ventures e pela argentina 17Sigma, além de fundos brasileiros e investidores-anjo.

Entre eles,  o fundo mexicano Bridge (que tem entre seus LPs os principais empreendedores de unicórnios do país) e os brasileiros DGF Investimentos, Alexia Ventures, Big Bets e Norte Capital.

Os fundadores da Aravita querem ir além. E compreender mais sobre a transformação de alguns produtos e suas diferentes formas de consumo. “A gente já discute como entender melhor o momento em que a laranja vira suco, por exemplo”, conta o CEO.

Isso significa vender o produto para o cliente que não compra fruta in natura, mas sob a forma da bebida. E isso pode influenciar o volume de compra — e, lá na frente, as perdas.

No mundo

O planejamento aprimorado da demanda do varejo, como propõe a Aravita, é apenas uma das soluções baseadas em IA no combate ao desperdício de alimentos.

A tecnologia pode ser usada na coleta de dados sobre quando os produtos estragam. É o caso da americana Strella Biotech, de Seattle, que desenvolveu um sistema de sensores capaz de indicar quando as frutas estão prontas para serem comercializadas.

A IA tem ainda o potencial de rastrear os resíduos, produzidos nos serviços de alimentação, identificando os pontos críticos nos quais os gestores devem se concentrar para evitar as perdas de comida

Sediada em Dublin, a Positive Carbon criou uma espécie de “Big Brother das cozinhas comerciais”.
Equipadas com câmeras de última geração, o sistema irlandês consegue fazer a distinção entre ingredientes e restos de pratos já consumidos. Os cozinheiros podem receber alertas do tipo: “Diminua a quantidade de lasanha em 25%”.

“Estamos apenas começando a entender o potencial total da IA como uma ferramenta para impulsionar reduções na perda alimentar”, avaliam, em relatório, os analistas da ONG americana ReFED. “Será emocionante ver como essa indústria se desenvolverá em um futuro próximo.”