O coronavírus e seus impactos devastadores são o alvo a ser combatido em todos os países do mundo. Mas, em paralelo a essas verdadeiras operações de guerra, os governos e autoridades de algumas nações começam a se preparar para travarem uma batalha em outra trincheira: as ofertas hostis de fundos e investidores estrangeiros por companhias e ativos estratégicos locais.
O pano de fundo para essa movimentação é o colapso nas bolsas de valores e nas ações de companhias listadas em todo o mundo. Com os papéis despencando a partir da escalada do vírus, muitas empresas estão ficando vulneráveis ao apetite dos compradores.
O Brasil é um exemplo dessa derrocada. Desde que o Covid-19 ultrapassou os limites da China e ganhou status de pandemia, as ações das empresas listadas na B3 vêm derretendo. Essas companhias somam uma perda de R$ 1,51 trilhão em valor de mercado no intervalo de 21 de fevereiro, antes da crise desembarcar no País, até 27 de março.
Os dados são da Economatica. A consultoria mostra ainda que 1.277 empresas, de 36 países, com American Depositary Receipts (ADRs) negociadas em Nova York (EUA) perderam US$ 2,9 trilhões no mesmo período.
Esse panorama também se traduz nos índices das bolsas europeias. Em Londres, o FTSE 100 caiu 26,2% neste ano. Em Madrid, o Ibex 35 recuou 30,4%. Já em Paris, o CAC 40 despencou 27% no mesmo período.
O cenário remete à crise econômica de 2008, que desencadeou uma série de aquisições de ativos dos Estados Unidos e da Europa, em dificuldades financeiras. Foi o caso da montadora americana Chrysler que, em 2009, em um acordo de resgate do governo local, teve 20% de sua operação comprada pela italiana Fiat. Cinco anos depois, a montadora italiana assumiu o controle da companhia.
No Brasil, algumas empresas também se beneficiaram desse contexto. Entre elas, a JBS, que estava capitalizada por sua abertura de capital, em 2007. A companhia investiu em uma forte estratégia de consolidação, tanto no País, como no exterior. Nessa última frente, um dos destaques foi a compra, em 2009, do controle da americana Pilgrim’s Pride, que estava em recuperação judicial.
Um dos primeiros sinais desse mesmo apetite na crise atual foi dado pelo Goldman Sachs. Segundo o site americano Vox, o banco passou a alertar seus clientes corporativos que esperava ver um aumento de ofertas hostis de investidores ativistas e fundos de private equity, à medida que os preços das companhias abertas seguiam sofrendo forte queda.
“Esses investidores e empresas de private equity já estão afiando suas facas, porque os preços estão, obviamente, muito baixos no momento”, afirmou ao site um sócio do Goldman Sachs. Além de contatar os clientes, o banco passou a compartilhar uma apresentação sobre como se preparar para esse cenário.
No Brasil, as companhias listadas na B3 somam uma perda de R$ 1,51 trilhão desde o início da crise
O movimento de defesa, no entanto, extrapolou os limites das empresas. “Já existia um movimento anterior de normas específicas de proteção borbulhando em vários países, como Estados Unidos e França”, diz Evy Marques, sócia do escritório Felsberg Advogados. “Mas, nas últimas semanas, isso ganhou força. E muito na linha de assegurar ativos ligados a vacinas para o vírus.”
Há duas semanas, a biofarmacêutica alemã CureVac esteve justamente no centro de uma disputa. Fundada em 2000, a companhia ainda não tem medicamentos no mercado. Mas está desenvolvendo tecnologias para o tratamento de doenças como o câncer. E já testou, preliminarmente, com bons resultados, uma vacina para o coronavírus.
Segundo o jornal alemão Die Welt, o presidente Donald Trump ofereceu recursos para que a empresa transferisse as tais pesquisas para os Estados Unidos. A informação foi confirmada, posteriormente, pelo ministério da Saúde da Alemanha à agência Reuters. Em resposta, a União Europeia anunciou que irá destinar até € 80 milhões à companhia.
A CureVac não seria o único ativo europeu na mira de Trump. No mercado, há rumores de que o governo americano poderia aproveitar a crise para auxiliar gigantes americanas como Cisco, Dell ou Microsoft na aquisição do controle da sueca Ericsson, de equipamentos e serviços de telecomunicações.
Por trás da suposta investida, estaria o interesse de reforçar o combate à chinesa Huawei, especialmente no domínio da tecnologia 5G. “O setor de telecomunicações é extremamente estratégico para os Estados Unidos”, afirma Eduardo Boulos, sócio do Cascione Pulino Boulos Advogados.
Liquidação
A reação da União Europeia não se restringiu ao caso da CureVac. Na quarta-feira 25, o órgão emitiu um comunicado com diretrizes para que os países membros fossem “vigilantes” como forma de garantir que “a atual crise da saúde não resulte em uma liquidação dos atores industriais e empresariais da Europa”.
O documento recomendava especial atenção para áreas estratégicas como saúde, pesquisa médica, biotecnologia e infraestrutura. “Como em qualquer crise, quando nossos ativos podem estar sob estresse, precisamos proteger nossa segurança e soberania econômica”, afirmou, no comunicado, Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia.
Ela afirmou que há recursos na legislação europeia e dos países para lidar com essa situação. E que todos os membros deveriam utilizá-los plenamente. “A União Europeia seguirá sendo um mercado aberto para investimentos estrangeiros diretos. Mas essa abertura não é incondicional.”
Segundo as normas da União Europeia, entre outros recursos, os países membros podem rastrear investimentos diretos estrangeiros de países não pertencentes à entidade, sob a alegação de segurança ou ordem pública. A partir dessa política, é possível vetar um aporte ou mesmo que um fundo ou investidor assuma o controle de uma operação.
Em linha com essa visão, alguns países europeus já estão adotando ou planejando medidas para se resguardar de eventuais “ataques”. É o caso da Espanha, um dos mais afetados pela pandemia na região. Em 17 de março, o governo local anunciou um decreto com regras nessa direção.
Na Espanha, um decreto de 17 de março proíbe que investidores estrangeiros comprem mais de 10% de empresas espanholas listadas em bolsa
O decreto proíbe, por exemplo, que investidores estrangeiros comprem uma fatia superior a 10% de companhias espanholas listadas em bolsa. Em alguns setores, os potenciais investidores devem solicitar, inclusive, permissão do governo. A regra passa por segmentos como energia, transporte, mídia, defesa, finanças, biotecnologia e comunicações.
Entre outras empresas, a medida protege ativos simbólicos do país, como o grupo Telefónica e o Santander. Desde o início da crise, o valor de mercado da operadora caiu quase 40%, para € 21,4 bilhões. Já o do banco recuou cerca de 45%, para € 36,8 bilhões.
Um dos países que mais sofre sob o avanço do Covid-19 no mundo, a Itália também está preparando medidas para defender empresas locais consideradas estratégicas de investidas estrangeiras. “Não iremos permitir que a Itália se torne o território de compras de alguém”, afirmou Stefano Buffagni, vice-ministro da Indústria local à agência Reuters.
No país, a legislação vigente já permite que o governo vete investimentos estrangeiros em empresas de setores como infraestrutura, defesa, energia e telecomunicações. O governo estuda, no entanto, reforçar as regras existentes, embora não tenha dado mais detalhes sobre quais políticas pode adotar.
Outros países da região, como a Alemanha, já afirmaram que seguirão o mesmo caminho. “Normas que vão além do direito concorrencial já vinham sendo estabelecidas por países como Estados Unidos, especialmente para proteger seus ativos do investimento da China”, diz Evy. “A Europa começa a seguir o mesmo caminho para se resguardar não apenas dos chineses, mas também dos americanos.”
No Brasil
Para as fontes consultadas pelo NeoFeed, não há sinais de que esse cenário terá reflexos no País. Ao menos no que diz respeito às ofertas hostis. “Esse tipo de oferta está, normalmente, ligada a companhias abertas”, diz Evy. “E aqui no Brasil, os fundos de private equity ainda veem o mercado de capitais como uma via de saída dessas operações.”
Ela ressalta, no entanto, que já é possível perceber o aumento do interesse de fundos e investidores brasileiros por “ativos estressados”, por conta da crise. “São empresas que não estão, necessariamente, em recuperação judicial, mas em pré-solvência”, afirma, ressaltando que o movimento ainda é muito recente. “Imagino que os investidores estrangeiros também virão, ainda mais por conta do dólar e porque, no momento, há muito dinheiro no mercado para investimento.”
Eduardo Boulos também está enxergando essa tendência por parte de fundos especializados nesse tipo de ativo. “Mas eles ainda estão esperando o cenário ficar mais propício”, afirma. “Os fundos estão bem captados e devem esperar os preços baixarem mais.”
Para Boulos, as incertezas sobre a extensão da crise e de questões como a duração e o modelo de isolamento, fazem com que exista um período de acomodação. “Ao mesmo tempo em que os investidores esperam, leva um tempo para o vendedor aceitar que o preço da empresa dele mudou”, diz. “E nesse contexto ainda incerto, às vezes nem mesmo a casa de M&A consegue incentivar qualquer transação, porque também ainda não consegue precificar esse ativo.”
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