O mercado de títulos incentivados está vivendo uma verdadeira caça ao tesouro para se adiantar aos efeitos da MP 1303/2025, que acaba com a isenção de diversos papéis de renda fixa.
Pela proposta, papéis hoje isentos para o investidor — como CRIs, CRAs e debêntures incentivadas — passariam a ser taxados em 5% no Imposto de Renda. Já as debêntures tradicionais, que seguem a tabela regressiva (de 22,5% a 15%), teriam uma alíquota fixa de 17,5%. A medida busca simplificar a tributação e eliminar o que o governo vê como um privilégio fiscal excessivo, em meio ao esforço por mais arrecadação.
A MP ainda precisa do aval do Congresso para que as novas tributações passem a valer. Mas, como a proposta prevê que a isenção dos papéis já emitidos deverá ser mantida, a tendência é que esses ativos se tornem cada vez mais raros (e valiosos) no futuro, caso a proposta avance.
O primeiro reflexo do risco de taxação tem sido sentido no mercado secundário, onde investidores negociam os títulos já emitidos. Em quase dois meses desde que o governo deixou clara a sua intenção de acabar com a isenção, o volume de negócios tem caído significativamente.
Em junho, mês da apresentação da MP, as negociações de CRIs, CRAs e debêntures no mercado secundário tiveram respectivas quedas anuais de 13%, 8% e 50%, segundo dados disponibilizados com exclusividade pela CR Data ao NeoFeed.
Os números parciais de julho, levantados na última semana, mostraram a continuidade desse movimento, com uma redução de 65% no volume de negociações de debêntures no mercado secundário.
“Muitos investidores não querem vender porque os novos títulos poderão ser taxados, especialmente para a pessoa física. Para um gestor, pode valer a pena se o título passar por uma valorização que compense a probabilidade de essa lei passar”, diz Daniela Gamboa, head de crédito privado e imobiliário na SulAmérica Investimentos.
Com a menor disposição em vender, o preço desses títulos tem aumentado, proporcionando rendimentos menores aos compradores. No mercado de debêntures incentivadas AAA, está negativo em 0,12% a mediana do spread de crédito, que é a diferença entre o valor pago em relação aos títulos públicos.
Em maio, quando os rumores sobre o fim da isenção começaram a ganhar força, o spread mediano estava em 0,12% positivo. “É um movimento expressivo, considerando esse mercado. Tem muitas debêntures pagando menos que os títulos públicos”, afirma Gamboa.
Embora o fenômeno seja atípico, já que os títulos públicos são praticamente isentos do risco de crédito, a diferença de tributação, na avaliação do mercado, tem compensado os spreads negativos.
Com a isenção ameaçada, a SulAmérica Investimentos acredita que uma estratégia que vem sendo adotada por investidores é o alongamento da carteira, com a troca de papéis com vencimentos mais curtos por títulos mais longos. “Em vez de ficar com um título da Sabesp, por exemplo, com prazo de dois anos, ele vende e compra outro de cinco anos, que terá essa isenção por mais tempo.”
O head de crédito do Pátria, Alexandre Coutinho, tem também notado esse movimento, mas afirma que prefere ficar de fora, devido aos riscos. Isso porque, quanto mais longo o vencimento, maior é sua sensibilidade à marcação a mercado. Uma eventual abertura dos spreads, portanto, poderia ter um efeito mais danoso às cotas dos fundos.
“É um risco isso acontecer se a proposta não avançar. Então, não fazemos isso no Pátria. Gostamos de ficar expostos somente ao risco de crédito das empresas”, diz Coutinho.
Apesar de toda a movimentação no mercado secundário, a esperada corrida de novas emissões para aproveitar a janela de isenção ainda não ocorreu. Até agora, pelo menos. Com as empresas bem capitalizadas, após o recorde de emissões de dívida no ano passado, e a alta de juros desincentivando novos empréstimos, o volume – pelo contrário – vinha diminuindo.
Segundo dados da Anbima, as emissões de debêntures tradicionais e incentivadas tiveram respectivas reduções de 34% e 32% no segundo trimestre em relação ao mesmo período do ano passado. Efeito semelhante tem ocorrido no mercado de CRIs e CRAs. Até a última semana de julho, esses títulos acumulam queda de 41,6% e 32,9%, respectivamente, no volume de emissões.
Apesar do ritmo ainda lento se comparado à dinâmica do ano passado, Felipe Ribeiro, sócio e diretor de investimentos alternativos do CR Data, começa a ver sinais de uma maior movimentação no mercado primário devido à MP.
O primeiro sinal surgiu no mercado de CRA, com a entrada de um volume de R$ 11,75 bilhões em emissões pendentes em julho, 70% de todo o volume de CRA que foi emitido no ano.
Considerando esses valores, as emissões de CRA em 2025 sairiam de uma redução para um aumento de 16% em relação aos valores emitidos no mesmo período de 2024. Os números foram puxados especialmente por uma emissão de R$ 8 bilhões organizada pela securitizadora Virgo, ainda de acordo com dados da CR Data.
“A MP causou uma busca por esse tipo de ativo como se fossem a última bolacha do pacote. Já tem mais de R$ 10 bilhões em CRAs para serem emitidos nessa linha. Quem está dentro não quer sair e quem está fora quer entrar”, afirma Ribeiro.
Um gestor que atua com a estratégia de crédito privado e tem bilhões em sua carteira acredita que, no fim do ano, o mercado de crédito privado deve explodir.
“Vai haver uma corrida de emissões”, diz esse gestor. “Todo mundo que puder vai antecipar (a emissão) para não correr esse risco (de pagar imposto em 2026).”
Os CRIs, segundo Ribeiro, da CR Data, ainda não “ressuscitaram” como os CRAs por terem um processo mais lento de maturação. “É um processo mais complexo. O CRA tem várias empresas que todo mundo conhece, como BRF, Suzano. O CRI é um processo mais complicado, precisa encontrar o lastro certo, a empresa certa.”
Mas pode ser apenas uma questão de tempo até o volume de emissões de CRIs começar a aumentar, com grandes players já se mexendo para aproveitar essa que pode ser a última janela de isenção. Quem está à frente desse movimento é a Kinea, maior gestora de fundos de investimento imobiliário (FIIs) de dívida, com R$ 22 bilhões nessa estratégia.
De olho no mercado de CRIs, a Kinea prepara o lançamento de duas novas emissões dos fundos de papel KNUQ11 e KNHY11. “A gente tem aí a legislação que deve ser votada em outubro. Este último semestre vai ter produtos. Então, isso traz uma oportunidade bastante grande para o investidor aplicar nesses produtos. O benefício fiscal ainda continua sendo muito forte”, diz Marcio Verri, CEO da Kinea.
As novas ofertas da Kinea ocorrem após um período de seca no mercado de fundos imobiliários. No primeiro semestre, as emissões de cotas de FIIs ficaram em R$ 20,6 bilhões, 25% de queda na comparação anual. Desse montante, R$ 7,6 bilhões foram emitidos apenas em junho – o melhor mês desde dezembro de 2021, quando o volume das ofertas de FIIs foi de R$ 10,1 bilhões.
Verri comenta que esse tipo de emissão não vinha acontecendo com frequência, especialmente devido aos descontos das cotas dos fundos imobiliários em relação ao seu valor patrimonial, o que inibia novas captações. Com a baixa captação dos FIIs, o mercado de CRIs vinha praticamente restrito ao acesso direto por pessoas físicas, que vinham sendo a maior responsável por embolsar as ofertas.
Mas, com a perspectiva de retomada do apetite por fundos de papel, Verri acredita que esse cenário pode mudar nos próximos meses. “A diferença agora é que tem um passivo disposto a comprar essas novas emissões. A demanda por emissões longas está aumentando.”