Poucas empresas conseguem personificar um segmento a ponto de se transformar em um sinônimo da área em que atua, como aconteceu com Xerox, Danone, Bombril ou Gillete.
A Uber é exemplo que rompeu essa barreira. Pedir um Uber é o mesmo que solicitar um carro de corrida por aplicativo para te levar para algum lugar. Mas a pandemia da Covid-19 está promovendo outros significados a essa expressão.
Pedir um Uber não é mais necessariamente achar um motorista para uma corrida de carro. Pode ser para fazer uma entrega de um produto de uma farmácia ou de um documento. Pode significar ainda o delivery da compra de um supermercado e até mesmo, quem diria, chamar os "arqui-inimigos" táxis.
Com a queda dramática do negócio de “caronas”, que em alguns casos chegou a 80% por conta do isolamento social, a operação brasileira acelerou uma série de planos que deveriam ir para a rua no segundo semestre de 2020 e início de 2021.
“A Uber sempre trabalhou com o conceito de plataforma e em ser o sistema operacional das cidades”, disse Claudia Woods, diretora-geral da operação brasileira da Uber, em entrevista ao NeoFeed. “A necessidade que as pessoas têm de que as coisas venham até elas mudou da água para o vinho na pandemia.”
E a Uber resolveu se “virar nos 30”, expressão que significa fazer algo em apenas 30 segundos, para dar conta desse novo tipo de demanda.
Isso ficou mais claro na segunda-feira, 14 de setembro, quando uma atualização do aplicativo de transporte deixou mais evidente os novos serviços, que foram divididos em viagens, delivery e mercado. Eles agora são expostos na tela principal do app.
Essa mudança foi apenas a ponta do iceberg na transformação da Uber. O Uber Eats, que já estava em operação há mais tempo, passou a ir além do delivery de comida e começou a oferecer também entregas de produtos de farmácias, de lojas de conveniência e de pet shops.
A startup chilena Cornershop, comprada pela Uber no ano passado e que já operava de forma independente no Brasil, foi integrada ao aplicativo principal da companhia. Hoje, ela já opera em 11 cidades brasileiras e tem parcerias com Carrefour, Big, Atacadão e Sam's Club, entre outros nomes do varejo.
Além disso, a Uber também criou o serviço Flash, que usa os seus mais de 1 milhão de motoristas para entregar documentos e presentes, já que as viagens com passageiros diminuíram.
Na semana passada, esse serviço ganhou uma versão corporativa, batizada de Uber Direct, que passa a concorrer com algumas startups de logística, como a Rappi e a Loggi.
O primeiro cliente da Uber Direct é a rede de varejo de eletroeletrônicos Fast Shop, que fará entregas de televisores ou notebooks em até duas horas na Grande São Paulo de produtos comprados em suas lojas ou site.
Até mesmo os táxis, que foram os grandes rivais da Uber desde a sua estreia no Brasil, podem agora ser chamados pelo aplicativo da empresa. O serviço, por enquanto, funciona apenas na cidade de São Paulo. Mas o plano é levá-lo para outras cidades. “Estava nos planos”, diz Woods. “Sempre foi uma demanda de nossos clientes corporativos.”
Uma fonte que viveu o período de batalha entre a Uber e os taxistas não deixa de fazer um comentário irônico sobre essa movimentação da Uber. “É interessante ver que agora, depois de anos com um discurso anti-táxi e aproveitando um momento em os taxistas estão carentes de viagens, a Uber decide incluí-los no aplicativo, apontando para o fato de terem acesso ao corredor de ônibus e prestarem um bom serviço corporativo como principais vantagens.”
Ao mesmo em que lançou uma série de novos serviços em uma velocidade estonteante – a maioria deles nos últimos dois meses – a startup que vale US$ 66,3 bilhões na Bolsa de Nova York criou um serviço de assinatura para tentar aumentar a venda cruzada desses produtos em seu aplicativo, bem como manter o consumidor preso em seu ecossistema.
O Uber Pass é uma assinatura mensal de R$ 24,99 que dá direito a 10% de desconto em viagens de UberX, descontos mensais e taxa de entrega grátis em pedidos acima de R$ 30 no Uber Eats e taxa de entrega grátis em pedidos em supermercados acima de R$ 100 na Cornershop.
Apesar desse esforço, os novos serviços ainda não compensaram a queda das viagens de carros. “As viagens já evoluíram bastante desde a queda de 80%, mas ainda não chegaram ao patamar de antes da pandemia”, diz Woods. Sobre os novos serviços, a diretora-geral da Uber acrescenta que eles são recentes e estão começando sua trajetória de crescimento agora.
Por que diversificar?
A busca para ir além das viagens de carros é uma das estratégias da Uber para encontrar um caminho rentável para as suas operações. Em 2019, a companhia comandada globalmente por Dara Khosrowshahi perdeu US$ 8,9 bilhões.
Nos dois primeiros trimestres deste ano, a Uber somou R$ 5,8 bilhões em prejuízo e demitiu 6,7 mil funcionários, o equivalente a 25% de sua força de trabalho. E não há, pelo menos no curto prazo, uma expectativa de que a companhia passe a operar no azul.
“A Uber ainda parece longe de conseguir fechar a conta com ride-hailing. Os preços de viagens estão muito baixos e os motoristas não ganham o suficiente em longo prazo. Essa equação não fecha”, diz uma fonte, que conhece esse mercado, mas não quer se identificar. “Uma solução é ampliar a oferta de serviços, principalmente os que tenham mais margem de lucro. Aproveitar o aplicativo que já tem muitos usuários baixa consideravelmente o custo de aquisição.”
Por isso, o esforço de diversificação é considerado vital na estratégia da Uber. “Eles nem sabem se algum dia essa conta vai fechar só fazendo o transporte de passageiros. Eles precisam encontrar o que vai gerar lucro”, disse Paulo Veras, fundador da 99, em entrevista ao NeoFeed, em agosto deste ano.
E isso já está acontecendo em todos os cantos do planeta – e não só no Brasil. Em julho, a Uber comprou a rival Postmates por US$ 2,6 bilhões, em uma transação baseada em ações. Com isso, a companhia reforçou sua atuação na área de delivery para brigar com a DoorDash, que lidera o segmento nos Estados Unidos.
A Uber está ainda operando com transporte público em algumas cidades americanas de duas formas. Em uma delas, além de informar os trajetos de ônibus e de metrô para consulta, a empresa também permite o pagamento das passagens através de seu aplicativo. Em outros casos, sua tecnologia é usada pela cidade para gerenciar a malha pública.
A companhia também atua com bicicletas e patinetes elétricos, um negócio que exige investimentos pesados e cujo lucro, por enquanto, é ainda uma miragem. Mas resolveu dividir sua aposta nesse setor com outra empresa.
Em julho deste ano, a Uber liderou um investimento de US$ 170 milhões na Lime, uma das principais empresas da área de patinetes. Com isso, a empresa assumiu a Jump, que era o braço da Uber para atuar nesse segmento.
Com esse aporte, a Uber está reavaliando a estratégia nessa área. A Lime estava no Brasil, mas encerrou as operações em janeiro deste ano, seis meses após o seu início. A Uber também fez um teste com patinetes elétricos em Santos, no litoral do estado de São Paulo, mas não levou adiante o projeto.
A reinvenção da Uber acontece em meio a uma concorrência mais acirrada. A 99, aplicativo controlado pela chinesa Didi Chuxing, também tem adotado estratégias semelhantes a da Uber para enfrentar a queda das corridas tradicionais de passageiros.
Uma delas foi o lançamento do 99Food, para brigar na área de delivery, anunciado em novembro do ano passado. “A 99 sempre apostou nas duas categorias, táxi e carro particular, e agora começa a ampliar os serviços com entregas e comida”, diz uma fonte do setor.
Não bastasse isso, novos concorrentes começam a surgir no horizonte. Um deles é o aplicativo brasileiro Sity, que anunciou no fim de agosto que irá começar a operar em mais de 100 cidades no Brasil e quer roubar um pedaço tanto da Uber, como da 99.