Em janeiro de 2018, o aplicativo de transporte 99 foi comprado pela chinesa Didi Chuxing e se transformou no primeiro unicórnio brasileiro, termo usado para se referir as empresas que atingem uma avaliação de US$ 1 bilhão.

Naquele dia, uma foto circulou entre as pessoas mais próximas mostrando Paulo Veras, Ariel Lambrecht e Renato Freitas, os três fundadores da 99, ao lado de um unicórnio, festejando a transação.

O que aquela imagem escondia era toda a trajetória de sangue, suor e lágrimas até aquele momento de festa eternizado num instantâneo (veja a foto abaixo).

Agora, essa corrida bilionária está contada em detalhes por uma de seus protagonistas no livro “Unicórnio verde-amarelo”, escrito por Veras em coautoria com a jornalista Tania Menai, lançado nesta semana pela Companhia das Letras.

“Vivemos uma montanha russa bem intensa. As pessoas, em geral, sem conhecer a história, tendem a achar que é fácil. E que, para chegar ao topo, é só ir subindo devagarinho”, disse Veras, em entrevista ao NeoFeed.

A narrativa de Veras passa a limpo os anos de difícil de competição com a Uber e a quase falência da 99 em 2016. Não deixa de abordar também um momento pessoal muito duro a Veras: quando foi diagnosticado com leucemia.

Nesta entrevista, Veras fala sobre a evolução do ecossistema de empreendedorismo brasileiro, discute as razões que fizeram a 99 dar certo e debate os motivos de os aplicativos de transporte ainda não darem lucro. Ele também se diz otimista que, em pouco tempo, as empresas de tecnologia vão estar entre as maiores do Brasil.

“Hoje, você vê indústrias grandes sendo desafiadas por esses empreendedores. Até a chegada da 99 com mais força, não se via startups desafiando o establishment. Agora, você vê em todos os segmentos”, afirma Veras. Acompanhe:

Por que você resolveu escrever um livro contando a história da 99?
Sempre fui muito ligado ao ecossistema de empreendedorismo. Trabalhei alguns anos na Endeavor. E a questão de passar esses aprendizados e lições para frente sempre foi muito importante para mim. E, na jornada da 99, o que não faltou foi desafio e aprendizado. Vivemos uma montanha russa bem intensa. As pessoas, em geral, sem conhecer a história, tendem a achar que é fácil. E que, para chegar ao topo, é só ir subindo devagarinho. Senti a necessidade de desmistificar um pouco isso e mostrar as dificuldades e os aprendizados que a gente teve.

Paulo Veras, Renato Freitas e Ariel Lambrecht festejam a venda da 99 para a Didi Chuxing

E quais foram os momentos tensos que vocês tiveram durante a construção da 99?
Brinco no livro sobre a questão dos anos pares e dos anos ímpares. Nós tivemos alguns anos bons, como os ímpares, em que tínhamos acabado de levantar capital. Então, você consegue contratar gente e investir mais. E, nos anos pares, em geral, a gente estava em uma situação oposta, com caixa curtíssimo, perdendo market share para a concorrência e com muitas dificuldades. Várias dessas dificuldades são relativas a como levantar capital suficiente para competir. E a gente teve concorrentes com muito dinheiro. Inclusive a Uber, que é a startup que levantou mais dinheiro na história. Esse foi um desafio grande.

Você conta no livro que a 99 quase faliu. Como foi essa história?
Isso foi no meio de 2016. Em 2015, havíamos levantando duas rodadas de capital e o principal objetivo ali era ganhar mercado. Até então, o maior volume de corridas era da Easy Taxi. Usamos bem esse dinheiro e terminamos o ano muito bem. Mais ou menos dois terços do mercado brasileiro de corridas por aplicativo era via 99. Mas, quando chegou 2016, a Uber começou a acelerar muito o produto deles de baixo preço e a gente começou a perder muito espaço. Nesse período, nós gastávamos muito mais dinheiro do que a companhia arrecadava. A gente já tinha gastado a maior parte para brigar com a Easy Taxi. Ganhamos aquele jogo, mas o jogo havia mudado de patamar. E ali quase que ficamos sem dinheiro.

O que vocês fizeram?
Tivemos de fazer um trabalho bem focado em conseguir equilibrar nossas contas para poder focar e competir com a Uber. Senão, não teríamos chegado ao fim do ano vivo. Foi um momento bem tenso.

Se teve tantos desafios e concorrentes poderosos, como o caso da Uber, por que, então, a 99 deu certo?
Deu certo por uma combinação muito importante de fatores. Acho que era um time muito bom. Tinha três fundadores que se complementavam muito bem e tínhamos uma cultura muito forte na 99. Se você for pegar qualquer empresa que deu muito certo, ela tem uma cultura forte. Não quer dizer que tem cultura certa ou errada.

O que mais?
Uma coisa que parece óbvia, que não é tão bem praticada, um foco obsessivo no consumidor, em fazer um produto mais simples e mais fácil de usar e que realmente funcionasse. Se você for ver, até hoje, tem muita empresa que maltrata o consumidor. Desde o começo, a gente se preocupou muito com segurança e em abrir canais de comunicação para o cliente falar com a gente. Os clientes sempre nortearam as nossas decisões.

"Nós não procurávamos alguém que queria seguir ordem. Queríamos alguém que fosse buscar soluções e dávamos muito autonomia"

Você comentou a questão do time. E, recentemente, o Ariel Lambrecht, seu sócio na 99, fez um post no LindedIn mostrando a quantidade de pessoas que passou pela 99 e que hoje fundaram as suas próprias startups. Por que isso aconteceu?
Depois que saiu a matéria da máfia da 99 (a reportagem foi escrita pelo NeoFeed), teve gente que me ligou para saber se eu tinha visto a reportagem. O Pedro Somma, que era nosso diretor de operações, me lembrou que a gente teve uma conversa em 2015 em que ele me perguntava o que para mim seria a medida de sucesso da 99. E eu falei para ele que, pessoalmente, seria se a gente criasse uma '99 mafia' no Brasil. Seria a gente construir uma jornada tão legal e formar tanta gente que essas pessoas iriam querer sair e fazer o seu negócio.

E acabou acontecendo...
Mas isso aconteceu por uma mistura de fatores. Um era que o perfil das pessoas que a gente trazia era muito empreendedor. Nós não procurávamos alguém que queria seguir ordem. Queríamos alguém que fosse buscar soluções e dávamos muito autonomia. E, por fim, na venda da 99, conseguimos acelerar stock options e dar liquidez para 25 pessoas que trabalhavam na empresa. E, com isso, essas pessoas saíram da 99 com dinheiro, não para se aposentar ou para resolver a vida, mas certamente para poder montar um negócio próprio sem depender do salário por dois ou três anos. Isso deu para elas a oportunidade de focar no sonho delas, sem se preocupar em pagar as contas do mês que vem.

Você também fala sobre a leucemia que teve durante a época em que estava na 99. Por que você resolveu contar essa história?
Durante o período todo em que fiquei doente, acabei não contando para ninguém. Eu não quis tornar isso público e continuei trabalhando normalmente. Na 99, obviamente, todo mundo sabia, mas a gente tomou um cuidado para que isso não virasse uma história pública. Um ou dois anos atrás, eu estava fazendo uma palestra para a Endeavor, naquele evento chamado Day One. É um momento em que as pessoas fazem uma reflexão grande sobre a vida. E o pessoal da Endeavor pediu muito para eu abrir a história toda, porque era obviamente uma parte importante. Ao escrever esse livro, um livro que gostei muito e usei bastante como referência foi o do tenista Andre Agassi, que chama Open. Esse livro me marcou muito. E quis usar como modelo. Esse livro sobre a 99 só teria valor para mim se eu deixasse a alma ali e contasse tudo o que aconteceu, tudo o que passei e tudo o que senti. E quase que ficaria esquisito deixar um pedaço que foi tão importante na minha vida pessoal e da 99 de fora. Eu ia achar que não fui 100% honesto. Foi essa a motivação que me fez abrir e me expor, porque eu entendi que não dava para fazer isso pela metade. Se fizesse pela metade, ia acabar soando falso.

"Os empreendedores estão se qualificando cada vez mais e pensando maior também. Eles não se contentam mais em vender o negócio pequeno e em sair rápido"

O que mudou no ecossistema brasileiro de empreendedorismo desde que a 99 se transformou no primeiro unicórnio brasileiro, em janeiro de 2018?
Mudou muita coisa. A primeira coisa que mudou é a quantidade de dinheiro para investir em startups brasileiras. Naquela época, quando a gente fez a rodada de US$ 200 milhões com a Didi e o Softbank, ela tinha sido de longe a maior rodada de venture capital no Brasil. Hoje, eu não sei se ela entra no top 10. A disponibilidade de capital para startups brasileiras mudou de patamar. O Nubank fechou uma rodada na semana passada que elevou o total de fund raising deles para U$$ 1,4 bilhão. Isso era totalmente inviável quando a gente começou a 99.

Quais outras mudanças você enxerga?
Outra mudança grande é que os empreendedores estão se qualificando cada vez mais e pensando maior também. Eles não se contentam mais em vender o negócio pequeno e em sair rápido. Com isso, eles acabam construindo negócios muito maiores. Hoje, você vê indústrias grandes sendo desafiadas por esses empreendedores. Até a chegada da 99 com mais força, não se via startups desafiando o establishment. Agora, você vê em todos os segmentos. Hoje, está muito claro que mesmo quando você começa uma startup, você pode brigar com os grandões. Isso não era comum. Isso anima mais as pessoas a perseguirem um mercado muito maior e a ter um crescimento mais acelerado. E, por fim, você começa a ter empresas que cresceram muito rápido e passaram por essa transformação de sair de 10, para 100, para 1.000 funcionários em um período curto de tempo. E como é que você gere isso? Como você recruta essas pessoas e monta uma área de operações tão grande e tão rápido? Você começou a ter mais gente que passa por um ciclo desses e consegue fazer outro. Antigamente, não tinha.

Há mais capital e empreendedores preparados para o crescimento exponencial. Mas será que eles estão preparados para criar empresas sustentáveis? Uma crítica que se faz a esse modelo é o caso do WeWork, que cresceu a todo custo, mas era um negócio que não se sustentava. Existe essa mentalidade nos empreendedores brasileiros?
Acredito que tem de tudo. Mas tem de lembrar que a maior parte das startups vai dar errado. As que dão certo são uma parcela bem pequena do total. Eu vejo muitas empresas crescendo de forma acelerada, mas com pé no chão, sustentável e montando uma base grande de clientes. Não acho que o Nubank corre esse risco de quebrar amanhã. Também não acho que isso acontece com a Stone. São empresas que conseguiram crescer muito rápido, mas de uma maneira responsável.

"Eu vejo muitas empresas crescendo de forma acelerada, mas com pé no chão, sustentável e montando uma base grande de clientes"

Por outro lado, você pode ter ‘n’ outras empresas como o WeWork, que gastou mal, exagerou e fez pouca conta. Tenho certeza que existem essas duas categorias aqui. Mas o que me deixa animado é que existem empresas suficientes da categoria que equilibra responsabilidade com velocidade para mudar totalmente o ecossistema. O Mercado Livre virou a maior empresa da América Latina em valuation. Mas, nos EUA, se você pegar as dez maiores empresas do mundo, sete ou oito são de tecnologia. Há dez anos, você ia encontrar só uma, que era a Microsoft. Eu tenho convicção que a mesma coisa vai acontecer no Brasil. Você vai ter caras que vão botar de pé negócios grandes, mas lucrativos e sustentáveis. Estou superconfiante de que esse vai ser o cenário.

A 99 foi comprada pela Didi Chuxing, que é uma empresa bilionária e tem o Softbank como investidor. A Uber e a Lyft também são empresas bilionárias. Mas todas dão prejuízo. Por que é tão difícil ser lucrativo nesse mercado?
Quando quase quebramos, em 2016, fizemos algumas mudanças em que conseguimos ter algum lucro. Era pequeno, mas era lucro. A gente conseguia parar de pé sozinho e pagar as próprias contas. Acredito que o que aconteceu ali, ou acontece ainda, é que acabaram estabilizando o preço das corridas num patamar abaixo do que é razoável para conseguir dar lucro. Nessa busca por muito market share, essas corridas acabaram sendo de certa maneira subsidiadas. E isso não é sustentável. Acredito que esse mercado ainda vai ter uma correção. Por outro lado, quando você corrige um pouco para cima os preços, o uso cai bastante. Transporte é uma categoria extremamente sensível a preço.

Seria por isso que essas empresas buscam diversificar seus negócios?
Certamente, porque eles nem sabem se algum dia essa conta vai fechar só fazendo o transporte de passageiros. Eles precisam encontrar o que vai gerar lucro. A dificuldade aí é que você já está listado na bolsa, valendo dezenas de bilhões de dólares. Você precisa criar um negócio bastante lucrativo para justificar esse valor de mercado.

Há hoje um pressão trabalhista e por melhores condições de trabalho desses profissionais de aplicativos. Isso é um risco ao negócio?
Essa pressão vai existir. Até agora, esse é um problema grande que não está endereçado. E não acho que transformar todo mundo em funcionário vai resolver o problema. E tem algumas soluções interessantes. Até a Uber publicou uma carta aberta, propondo em criar uma previdência privada e um fundo comum de seguro-desemprego para a pessoa que sofrer um acidente e tiver que parar por duas semanas. Acho que é por aí que esses problemas vão se resolver. Do jeito que está, está muito frágil. E há uma pressão legítima para dar um pouco mais de segurança para essas pessoas. Na minha visão, essa solução de criar um caminho do meio e construir algum tipo de proteção para a categoria é muito importante e acredito que ela vai ser viabilizada nos próximos anos.

Depois que você vendeu a 99 você se tornou um investidor?
Eu ainda me considero um empreendedor. Eu investi em nove empresas e estou bem próximo delas. Não estou fazendo isso apenas por uma questão financeira. Estou fazendo isso porque estou encontrando times supercompetentes e talentosos que estão atacando problemas imensos. Eu gosto de compartilhar essa jornada com eles.

"Eu ainda me considero um empreendedor. Eu investi em nove empresas e estou bem próximo delas. Não estou fazendo isso apenas por uma questão financeira"

Você não tem intenção montar um fundo de ventre capital estruturado ou de voltar a ser CEO de uma startup?
Hoje não penso nisso. Primeiro porque não quero fazer gestão de dinheiro de terceiros. É outro business. E estou ocupando meu tempo de uma forma tão prazerosa, aprendendo um monte de coisas novas e vendo um monte de problemas interessantes sendo atacados que não sinto falta de estar liderando a execução do negócio.

Você tem algum arrependimento na 99?
Acho que não. A gente correu os riscos que tínhamos que correr. A gente tomou decisões muito boas. A gente passou por momentos de muita dificuldade. Mas não tem nada que eu me arrependa. Nem de ter vendido. Os momentos em que a gente levantou capital sempre foram em condições não ideais – fomos penalizados no valuation e nos termos. Mas a gente também não tinha tantas opções. Era o melhor que eu tinha. Uma coisa que talvez eu teria feito diferente seria botar alguém mais cedo focado em captação de recursos. Isso possivelmente teria feito a nossa vida um pouco mais simples. Mas a gente também não tinha a ideia de que o jogo ia ficar tão caro.

E qual o grande acerto da 99?
Foi sem sombra de dúvida o time. Isso é o que faz total diferença. Costumo brincar que quando vai ter jogo e as pessoas fazem aquele raio-x. Imagina Corinthians e São Paulo e avalia se o goleiro do Corinthians é melhor do que o do São Paulo ou o lateral direito do São Paulo é melhor do que o do Corinthians. Esse exercício é muito útil para quem está tocando uma startup. Será que meu time é melhor do que o time dos concorrentes? E a chance disso se traduzir em ganhar o jogo no final é quase de 100%. Esse esforço em recrutar as pessoas certas, em manter e em dar espaço a quem você tem dentro de casa é o que faz a diferença entre quem ganha e quem perde o jogo. Esse foi o maior acerto que a gente fez. Em todas as fases da 99, cultivamos um time excepcional, que, na minha visão, sempre foi muito melhor do que o dos concorrentes no Brasil. E, quando a gente estava quase quebrando, ninguém pediu demissão. O pessoal era muito missionário. Acredito que essa foi a grande fortaleza que construímos e que permitiu o sucesso no final da trajetória.

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