A morte do empresário Carlos Alberto de Oliveira Andrade, cujo nome forma a sigla Caoa, vai ser um ponto de divisão na história da indústria automobilística brasileira. Com o adeus de “Doutor Carlos”, como era chamado desde os tempos em que exercia a medicina na Paraíba, desaparece a figura do empreendedor que criou a empresa e a marca na área de carros.
Caoa, que tinha 77 anos e se tratava de um câncer, deixou um legado para duas marcas asiáticas: a coreana Hyundai e a chinesa Chery. Sem o seu modus operandi, a Hyundai e a Chery talvez nem existissem no mercado brasileiro. Entretanto, em agosto, as duas marcas terminaram em 4º e 10º lugares, respectivamente, na venda de automóveis. Somadas, a Hyundai e a Caoa Chery venderam 18.898 veículos, mais do que as gigantes Toyota, Volkswagen, Jeep, Renault, Chevrolet, Honda e Nissan.
As duas marcas “criadas” por Caoa somaram 11,6% de participação. Perderam apenas para a Fiat, com 46.684 carros vendidos e 26,9% de participação. Poderia ser mais se incluíssemos na conta a Renault, que entrou no Brasil, em 1992, pelas mãos de Caoa. Mas foi exatamente o divórcio com os franceses que deu ao “Doutor Carlos” a chance de construir novas marcas de carros e se tornar o rei dos SUVs.
A Renault viu que o negócio era bom e rompeu o contrato. A briga foi parar na Justiça e a Renault ganhou o direito de fabricar seus próprios automóveis. Mas Caoa foi indenizado e aprendeu a lição. Surgiu então o criador de marcas em sua fase mais agressiva. Ao passar de comerciante de carros a fabricante, Caoa pode imprimir sua personalidade nos automóveis que vendia.
Seguiu, portanto, os passos de Wolfgang Sauer, que foi a “cara” da Volkswagen nos anos 70 e 80. Também a de André Beer, o “Senhor GM” durante décadas. E ainda a de João Gurgel, que tentou o sonho do carro brasileiro, mas seu barco naufragou quando Pacifico Paoli revolucionou a Fiat nos anos 90, ao lançar o Uno Mille. Sauer, Beer e Paoli não eram donos da marca, mas era como se fossem.
Em 1990, com a abertura das importações, empresários que atuavam no varejo de automóveis passaram a ser representantes das marcas. Houve uma avalanche de novas marcas de carros e alguns nomes passaram a se confundir com elas, casos de Eduardo de Souza Ramos (Mitsubishi), José Luiz Gandini (Kia), Leonardo Senna (Audi), Reginaldo Regino (BMW) e Marcel Visconde (Porsche). Ao longo do tempo, entretanto, todos eles se afastaram ou não conseguiram transformar a marca de importador em fabricante.
Em 1998, sem a Renault, Caoa ficou com o dinheiro da indenização, mas sem a marca. Vender carros já não era segredo para ele, que se tornara concessionário Ford em 1979, em Campina Grande (PB), quando o mau atendimento na compra de um Ford Landau (carro preferido dos médicos da época) resultou na compra da concessionária inteira. Caoa então trouxe a japonesa Subaru, mas sabia que a marca nunca teve, não tem e não terá ambições de ser uma gigante global (apesar de seus ótimos carros).
Caoa queria a Mitsubishi, mas os representantes da marca japonesa, Eduardo de Souza Ramos e Paulo Ferraz, não quiseram vender. Então ele fez sua aposta mais ousada: tornou-se representante da Hyundai em 1999. A marca coreana estava quebrada no Brasil. Tinha sido mal administrada pelo Grupo Garavelo e em apenas uma década teve sua operação interrompida duas vezes.
O que veio a seguir foi histórico. Caoa teve a sorte (ou a visão empresarial) de apostar numa marca que, apesar da rejeição local, iniciava seu sucesso global. A Hyundai Caoa começou a mudar o jogo quando a empresa estabeleceu uma relação de confiança com os consumidores ao apostar no pós-venda. Quando uma nova geração de carros foi lançada e a Hyundai passou a ser ainda mais elogiada no mercado internacional, Caoa se tornou o mais agressivo anunciante do mercado.
Carros como o sedã Azera e o hatch i30 passaram a ser comparados com modelos da BMW nos anúncios, que ocupavam as primeiras páginas dos jornais. Foi um xeque no xadrez da indústria automobilística. Como a gloriosa BMW responderia à desconhecida Hyundai? Se respondesse, acusaria o golpe, se colocaria no mesmo patamar.
Para Caoa, não importava. Ele anunciava seus carros como se fossem “a oitava maravilha do mundo”, frase que pode usar recentemente quando a Caoa Chery lançou o Tiggo 8, um enorme SUV de sete lugares. Porém, numa ocasião, Caoa exagerou e anunciou que o Hyundai Veloster tinha 141 cv de potência, quando tinha apenas 121 cavalos. Teve que indenizar clientes que foram à Justiça.
A maior cartada da Hyundai Caoa aconteceu com o Tucson, um pequeno SUV que fazia concorrência ao Ford EcoSport. Em 2007, o Hyundai Tucson só perdeu em vendas para o Ford EcoSport e o Mitsubishi Pajero. O carro era realmente bom, mas a estratégia de marketing agressiva e o pós-venda caprichado tornaram o Tucson quase uma febre nacional.
Assim como a Renault, a Hyundai descobriu que o mercado brasileiro era bom e quis caminhar por conta própria. Mas Caoa tinha sido mais rápido e desde 2007 fabricava o Tucson, seu sucessor ix35 e um caminhão leve em Anápolis (GO). Quando a Hyundai começou a fabricar o compacto HB20 em Piracicaba (SP), em 2017, a Caoa Montadora já tinha cinco anos de estrada. A Hyundai decidiu então diferenciar a rede, criando um pórtico azul para os carros que ela vendia e um cinza para os carros que Caoa vendia. O HB20 só seria vendido nas concessionárias com pórtico azul.
Bobagem. Na primeira semana já havia HB20 também nas lojas da Hyundai Caoa. Apesar do sucesso da parceria, a Hyundai quis encerrar o acordo. O caso foi parar em tribunais internacionais e a indenização seria de US$ 10 bilhões. Recentemente, Hyundai e Caoa renovaram o acordo até 2028.
Nem tudo que Caoa fez, a Hyundai faria. Em 2015, quando o New Tucson foi lançado, Caoa conseguiu a proeza de fabricar e comercializar o mesmo carro de três gerações diferentes: o velho Tucson dos anos 2000, o ix35 que o sucedeu com outro nome e o New Tucson, que era a nova geração do ix35. Essa estratégia nunca foi usada pelas montadoras, que mantêm (no Brasil) no máximo dois carros de gerações diferentes, para poder ter um modelo de entrada e cobrar mais caro pelo novo.
O último grande negócio de Caoa na área de carros foi a sociedade com a Chery. Escaldado pelos cismas experimentados com a Renault e a Hyundai, Caoa amarrou melhor o acordo com os chineses, cuja operação no Brasil estava na bancarrota. Fez questão de incluir o nome Caoa como marca. Portanto, os carros da Chery passaram a se chamar Caoa Chery.
Em apenas dois anos, o “rei dos SUVs” repetiu a estratégia do Tucson e criou uma grande família de utilitários esportivos, todos com o mesmo nome: Tiggo (2, 3X, 5X, 7 e 8). O Tiggo 2 e o Tiggo 3X são o mesmo carro, porém com acabamento, motor e posicionamento diferentes.
Nos últimos tempos, Carlos Alberto de Oliveira Andrade tinha dois fortes executivos no dia a dia: Mauro Correia, presidente da Caoa, e Marcio Alfonso, CEO da Caoa Chery. A empresa tinha um plano de sucessão e a ideia é continuar na mesma linha, sem mudança de diretoria. A estratégia de Caoa vai continuar na área de pós-venda e também na escolha dos modelos a serem fabricados e vendidos.
A Caoa Montadora também poderá usufruir dos estudos do maior laboratório de eficiência energética da América Latina, inaugurado em Anápolis (2015) com investimentos de R$ 121 milhões. Mas o carisma do “Doutor Carlos” na hora de negociar contratos publicitários e de aprovar as peças de propaganda não estará mais presente.
Muitas pessoas do setor dizem que o empresário Caoa foi uma espécie de rei Midas dos carros. Talvez. Afinal, transformou em ouro a Renault, a Hyundai e a Chery, mas também foi punido por transformar tudo em ouro (como o rei da mitologia grega). Para a poderosa indústria automobilística global, muitos acreditam que não há mais espaço para o homem criador de empresas e marcas, embora Elon Musk faça com a Tesla o que um dia Henry Ford fez com o Model T. Musk é a exceção que confirmaria a regra.
Para a indústria de carros, o executivo brilhante assumiu o papel do dono há décadas. Na própria Ford e depois na Chrysler, na figura de Lee Iacocca, criador do Ford Mustang e do Dodge Caravan (primeira minivan). Na indústria automobilística brasileira, Carlos Alberto Oliveira Andrade foi o último. Agora é a fase dos super executivos, na qual se destacam Antonio Filosa (Stellantis) e Pablo Di Si (Volkswagen). Caoa ficou na história e seu nome seguirá nos carros chineses fabricados no Brasil.