SANTIAGO DE COMPOSTELA - As peregrinações pelos caminhos ligados ao apóstolo Santiago são feitas há séculos. A bem da verdade, os primeiros relatos para render homenagem ao santo datam ainda do século X, pouco depois que seu sepulcro foi encontrado. No século XX, "fazer o Caminho de Santiago" se tornou febre entre muitos viajantes.
Diferentes documentários e filmes têm reforçado o poder transformador de entregar-se a jornada e inspirado gerações pelo mundo a colocar a mochila nas costas. À pé, em bicicleta, a cavalo e até a vela, há hoje diversos itinerários "oficiais" entre Espanha, França e Portugal à escolha do viajante. Nestas primeiras décadas do século XXI, vem aumentando também o número de turistas interessados em fazer "el Camino" com o máximo de conforto possível. "El Camino a lo grande", como dizem os espanhóis.
São turistas de distintas partes do planeta (inclusive brasileiros) que querem percorrer os trajetos sem abrir mão dos altos níveis de conforto e comodidades com os quais estão acostumados. Estão interessados na beleza e na mitologia dos caminhos de Santiago, mas não querem se sujeitar a bolhas nos pés ou noites mal dormidas em acomodações econômicas.
Ao contrário: se hospedam em hotéis de luxo ao longo da rota, elegem restaurantes com estrelas Michelin, visitam vinícolas premiadas e se deslocam em carro - ou com auxílio de serviços especializados que transportam todas suas bagagens diretamente de um hotel ao destino seguinte. Afinal, por que não fazer o Caminho de Santiago à exemplo de Reis e Rainhas ao longo dos séculos?
"A lo grande!"
O governo e a iniciativa privada buscam entender o que quer esse tipo de turista e vêm investindo nesta qualificação dos serviços na última década. A exemplo de Madri, que desde o final do ano passado lançou uma campanha para se estabelecer como nova capital de luxo da Europa, há clara intenção de valorizar o conforto aliado a perigrinação ao largo do Caminho de Santiago.
Uma das estratégias do governo espanhol para tentar retomar mais rapidamente a importância do turismo para o PIB nacional é justamente atrair viajantes dispostos a gastar mais. Em 2019, por exemplo, o turismo representava 12,4%. Caiu para 5,5% em 2020 e chegou a 7,4% do PIB no ano passado.
No último julho, Santiago de Compostela foi uma das cidades de melhor desempenho na atração de turistas no país. Sua recuperação se deu, contudo, com o público interno que triplicou no verão. Com o fim das restrições em função da pandemia, são os viajantes estrangeiros que já estão retornando.
Por isso, os departamentos de turismo das regiões da Galícia e Castilla y León estão investindo na divulgação dessa sofisticação da rota, convidando jornalistas, influenciadores, agentes e consultores de viagem para conhecerem seus produtos de alto padrão.
"Através de nosso contato com empresas de diferentes nichos que trabalham com luxo, sabemos que o Caminho de Santiago de luxo está na moda, seguramente. Inclusive entre brasileiros", garante Alberto Bosque, do órgão oficial de turismo de Castilla y Leon. "Cresceu a procura por transporte privado de passageiros, transporte de bagagem, serviços de guias particulares, visitas privativas a atrações e adegas do itinerário, assim como as estadias em hotéis históricos e de charme", completa.
Apesar de ainda não ter dados oficiais consolidados sobre este público específico, o Turespaña, órgão oficial de promoção do turismo espanhol, confirma esse movimento crescente. Principalmente neste 2022, que segue celebrando o ano Xacobeo de 2021, que em função da pandemia e das restrições de circulação foi estendido pelo Papa Francisco.
O Xacobeo, também conhecido como Ano Santo ou Ano Jubilar, é comemorado quando o dia de Santiago, 25 de julho, cai num domingo - coincidência que ocorre em intervalos de 5, 6 e 11 anos.
O Brasil no Caminho
Dados oficiais mostram que 6.025 brasileiros fizeram o Caminho de Santiago "oficialmente" em 2019, percorrendo pelo menos 100km à pé ou 200km em bicicleta. Mas é sabido pelos órgãos que esse número é, de fato, muito maior. Afinal, não apenas muitos brasileiros viajam pelo país com passaporte europeu por terem dupla cidadania, como também cada vez mais fazem o Caminho sem ser caminhando ou em bicicleta.
A dificuldade em medir exatamente quantos turistas fazem o Caminho de forma não-oficial é que, para os registros oficiais, só são contabilizados peregrinos que preenchem seus certificados ("Compostelas"). Turistas viajando em trem ou carro através de diferentes rotas do Caminho nunca são contabilizados. Mas hotéis de luxo e restaurantes estrelados dos itinerários têm registrado aumento de hóspedes e clientes consistentemente.
"Sabemos que nem todos os brasileiros que fazem o Caminho solicitam a credencial de Peregrino, já que muitos não fazem o percurso caminhando, de bicicleta ou à cavalo", explica Alberto Bosque, representante do escritório de turismo de Castilla y Leon. "Neste 2022, através de nosso contato com diferentes agências de viagens, comprovamos que o interesse dos brasileiros no Caminho de Santiago 'a lo grande' foi de fato multiplicado", diz Alberto.
Para comer e se hospedar (muito) bem
As diferentes rotas do Caminho passam por algumas das mais variadas e belas paisagens da Espanha: vilarejos à beira-mar, planícies, colinas, bosques, pueblos pitorescos, grandes cidades repletas de história e vida cultural. Percorrer seus itinerários não é apenas uma experiência reflexiva ou espiritual, mas também turística, dada a oportunidade de descobrir novos lugares, sabores e costumes a cada dia.
De adoráveis hotéis boutique rurais a paradores e hotéis de luxo nas grandes cidades, o viajante que percorre total ou parcialmente as rotas do Caminho de Santiago na Espanha tem hoje mais opções cheias de conforto para se hospedar.
Na parte espanhola dos 940km que compõem o Caminho Francês (que vai de Saint-Jean-Pied-de-Port, no sul da França, e vai até Santiago de Compostela), o mais procurado por viajantes internacionais e reconhecido como patrimônio mundial pela Unesco em 1993, há icônicos Paradores e hotéis, propriedades charmosas que podem ir de 80 euros até ultrapassar facilmente os 600 euros.
Entre eles merecem destaque o Gran Hotel La Perla (que já recebeu Errnest Hemingway, reis e infantes), Hotel Tximista (instalado em uma antiga fábrica de farinha do século XIX), Elciego (parte do complexo Marqués de Riscal, projetado por Frank Gehry), Abba Burgos (operando em um antigo seminário), NH Collection Palacio de Burgos (ocupando um edifício com mais de 500 anos de história) e Posada Real Casa de Tepa (antiga hospedaria histórica de peregrinos convertida em um hotel).
Os Paradores de Espanha são uma cadeia de hotéis de alta qualidade (gerida pela sociedade anónima “Paradores de Turismo de España, SA”, cujo único acionista é a Direção Geral do Patrimônio do Estado), geralmente localizados em centros históricos ou zonas naturais classificadas, e frequentemente ocupando edifícios históricos restaurados.
Não são hotéis de alto luxo, mas costumam ser bastante confortáveis e com serviço atencioso. Em 2018, foi anunciado um investimento de 168 milhões de euros na revitalização da rede e, desde então, vários deles têm retomado o “esplendor de outrora”. Na região de Castilla y León, cortada pelo Caminho de Santiago, são quinze deles.
O selo "Posadas Reales" é outra referência de excelência para pequenas e confortáveis propriedades instaladas em edifícios históricos, castelos e palácios, como o Convento de São Francisco, em Burgos, e Casa de Tepa, em León.
A experiência se completa com 13 restaurantes estrelados no Michelin só nesta região, como os moderninhos e craques em cocina fusión Mu-na (em Ponferrada), Concinandos e Pablo (ambos em León), e bares deliciosos e super trendy, como a imperdível vermuteria Rua 11, também em León.
Luxo à galega
Mas a região da Galícia, onde ficam a cidade de Santiago de Compostela e os trechos finais dos míticos caminhos, é ainda mais fértil em opções para o turista de luxo. São 16 restaurantes com estrelas Michelin, inspirados nos sabores genuinamente galegos, na vanguarda ou mesmo na cultura espanhola das tapas, como A Tafona, Casa Solla e Culler de Pau.
O Casa Marcelo, em Santiago de Compostela, praticamente ao lado da majestosa Catedral, tem toda a bossa de um restaurante moderninho e super movimentado, sem nada da formalidade que se poderia esperar de uma estrela Michelin em outros países. A antipatia e os chiliques do chef Matías - que odeia ver celulares no restaurante - e o serviço sempre apressado e super informal são compensados pela comida realmente saborosa.
A Galícia é mais bem servida também em hospedagens para os viajantes exigentes. O Parador de Santiago de Compostela, o mais famoso de todos, funciona num antigo hospital de peregrinos construído em 1499 e fica em frente à Catedral de Santiago de Compostela. O hotel tem se beneficiado do aporte de investimentos desde 2018, passou por renovação, e agora conta várias áreas revitalizadas, como os jardins, e atualização dos quartos e banheiros (em elegante mármore cinza).
A região conta também com hotéis que já nasceram no século XXI, focados nesse perfil de luxo. Dois destaques desta nova safra ficam já muito próximos ao gran finale do Camino. Um deles leva inclusive chancela Relais&Chateaux. Tocado por mãe e filha, Maria Luisa Garcia e Luísa Lorenzo, a Quinta da Auga (diárias desde 160 euros) é resultado do capricho e do bom gosto da família em cada cômodo.
A família criou uma hospedagem realmente incomparável no Caminho de Santiago, focada em viajantes que querem relaxar e comer muito bem em meio à natureza exuberante da região. São 51 luxuosos quartos, todos banhados pela luz natural e rodeados de verde, com serviço primoroso. A propriedade ainda conta com um bom spa e um delicioso restaurante, o Filigrana.
Outra boa opção é o hotel Torre do Rio (diárias desde 240 euros), que aposta no turismo rural em seus 10.000 m2 da propriedade que já foi uma fábrica de tecidos do século XVIII, margeando um dos meandros do rio Umia. Além dos charmosos quartos com vista para o verde (são apenas 14 no total), o hotel conta também com uma deliciosa piscina natural, já que fica a pouco mais de um quilômetro de Caldas, uma charmosa vila termal.
E até na hora das visitas a adegas premiadas, a região tem destaque. Uma opção é a vinícola Terras Gauda, nos arredores de Pontevedra. O tour guiado inclui percorrer parte da propriedade para aprender sobre seus meios sustentáveis de cultivo e colheita e degustar seus premiados vinhos albariño como O Rosal.
Uma das propriedades mais bem conservadas da região é um "pazo español", semelhante às quintas portuguesas. O Pazo do Faramello, de 1714, já foi a Real Fábrica de Papel espanhola e hoje abre parte de seu território à visitação turística. O lugar abriga uma capela com um retábulo restaurado do mestre barroco José Gambino, com uma cruz de pedra do séc. XVIII. E tem vistas magníficas dos jardins franceses do século XIX. A visita é bem detalhada, com quase uma hora e meia de duração. Para finalizar, uma taça do vinho local inspira a novas descobertas nas rotas míticas.