Berlim - Palhaço alemão é enviado aos campos de concentração, como preso político, após ridicularizar a figura de Adolf Hitler durante a Segunda Guerra Mundial. Lá, o protagonista do filme “The Day the Clown Cried” (“O Dia Em Que o Palhaço Chorou”, na tradução literal) acaba distraindo as crianças judias no caminho que as leva até a câmara de gás.

Apesar de o enredo lembrar o de “A Vida É Bela” (1997), do italiano Roberto Benigni, a produção foi rodada 25 anos antes, em 1972, por ninguém menos que Jerry Lewis (1926-2017), um dos maiores comediantes que o cinema já viu.

O maior esforço dramático de Lewis, no entanto, até hoje nunca foi apresentado ao público, figurando como o “filme maldito” da carreira do humorista. O material continuará inédito pelo menos até 2024, quando a Biblioteca do Congresso americano finalmente terá a permissão de exibir uma amostra do trabalho que o astro realizou.

O filme mesmo (ou o que era o primeiro corte dele), um projeto inovador para a época, desapareceu depois de uma série de problemas, incluindo a fuga do produtor com o dinheiro, embate de egos e longos processos judiciais.

“O que o meu pai doou à biblioteca foram as imagens dos cinco últimos dias de filmagem, tudo o que ele conseguiu salvar”, diz ao NeoFeed, Chris Lewis, de 62 anos, um dos seis filhos que o humorista teve com a primeira mulher, a cantora Patti Palmer.

Desde 1995, ele é o herdeiro que administra a distribuição de filmes e dos programas de televisão do repertório do pai, incluindo clássicos como as comédias “O Professor Aloprado” (1963), “O Terror das Mulheres” (1961) e “O Mensageiro Trapalhão” (1960).

Em Berlim, um pouco antes de a Alemanha adotar as medidas de distanciamento social, Lewis doou à Cinemateca local tudo o que o pai tinha guardado de lembranças de “The Day the Clown Cried”.

O material inclui itens pessoais que o cineasta usou durante a filmagem, como roteiros, desenhos, fotografias, cadernos de anotações, documentos, imagens de making of e até a mala com produtos de maquiagem para a sua transformação em palhaço.

“Há ainda algumas cartas, como a que meu pai escreveu ao homem que roubou o dinheiro do filme, dizendo o que gostaria de fazer com aquele produtor”, diz Chris Lewis, herdeiro do ator

“Há ainda algumas cartas, como a que meu pai escreveu ao homem que roubou o dinheiro do filme, dizendo o que gostaria de fazer com aquele produtor.” Lewis se refere ao produtor belga Nat Wachsberger (1916-1992), que procurou o humorista em 1971, quando o homem conhecido como o “Rei da Comédia” se apresentava no teatro Olympia, em Paris.

O produtor garantiu financiamento para o drama, sobretudo com investidores franceses e suecos – isso explica o filme ter sido rodado em Estocolmo. O comediante teria a chance de protagonizar e dirigir a produção no lendário Europa, estúdio de cinema onde Ingmar Bergman (1918-2007) fez alguns de seus trabalhos.

“A vida de meu pai tinha mudado bastante no final dos anos 60, quando os filmes para a família, sua especialidade, já não eram mais o que o público americano queria ver”, afirma o herdeiro, referindo-se provavelmente a fracassos de bilheteria, como “De Caniço e Samburá” (1969), que arrecadou US$ 8,5 milhões nos EUA.

Era uma renda muito abaixo dos US$ 150 milhões garantidos por “O Rei do Circo” (1954), quando Lewis ainda era parceiro de Dean Martin, e dos US$ 135 milhões obtidos com a venda de ingressos de “A Canoa Furou” (1959), já em carreira solo.

Isso explica o astro estar à procura de algo diferente, de veia dramática, na década de 70. “Sem falar que o filme proposto retratava um palhaço alemão, que sofria justamente pelo fato de um dia ter sido famoso e não ser mais. Era o que o meu pai sentia. Embora ele estivesse no meio de uma temporada de dez dias no Olympia, em que era aclamado pela plateia francesa, meu pai não podia voltar aos EUA para fazer os seus filmes, o que era muito deprimente para ele”, conta Lewis.

Da euforia a um duro golpe

O novo projeto deixou o astro entusiasmado, levando-o a visitar o que sobrou dos campos de concentração de Auschwitz e Dachau e a começar a reescrever o roteiro, assinado pela americana Joan O’Brien (1917-2004). “O que o meu pai não sabia era que os direitos da história não tinham sido assegurados pelo produtor”, diz Lewis, referindo-se ao fato de Wachsberger ter dado apenas um sinal a O’Brien, de US$ 5 mil.

Os US$ 50 mil adicionais, que ela deveria ter recebido antes do início das filmagens, nunca foram pagos. “Isso significou que o meu pai rodou um filme sobre o qual não tinha os direitos, o que foi apenas o início dos problemas.” Foi no meio das filmagens, quando o produtor já tinha fugido com US$ 1 milhão, que o cineasta descobriu o golpe.

Assim que terminou a obra, Lewis procurou O’Brien para tentar um novo acordo com a autora. “Como o meu pai tinha mudado bastante o filme, a partir do que ela tinha feito, a roteirista não gostou do resultado, principalmente por ele nunca ter pedido a permissão dela. Mas meu pai achava que tinha a permissão, por acreditar que ela já tivesse recebido a sua parte.”

Foi assim que o caso foi parar nos tribunais na Suécia, na França e nos EUA, onde tramitou por mais de 20 anos. Mas o assunto nunca foi solucionado, pelas partes envolvidas não terem chegado a um acordo.

“Ninguém sabe onde o primeiro corte do filme foi parar”, conta Lewis, acrescentando que o pai só resgatou o material dos últimos cinco dias de filmagem junto ao laboratório. “Como eles também não tinham sido pagos, abandonaram o trabalho, permitindo que o meu pai levasse os negativos finais para os EUA, onde eles foram revelados.”

Só a partir de junho de 2024 é que a Biblioteca do Congresso poderá mostrar esse material, doado pelo próprio comediante, em 2015. O astro impôs essa condição não só porque o processo já terá caducado na ocasião, mas para ter certeza (ou quase) de que ele não estaria mais vivo.

Lewis morreu aos 91 anos, em 2017. “Meu pai ficou tão desapontado com tudo o que aconteceu que não quis mais saber do filme. Ele nem queria mais guardar as coisas relacionadas ao projeto, entregues agora à Cinemateca alemã. Tudo estava há muito tempo comigo.”

E Jerry Lewis chegou a ver “A Vida É Bela”, de temática similar? Na produção, Roberto Benigni interpreta um judeu que inventa brincadeiras, na tentativa de esconder do filho o fato de ambos estarem em campo de concentração nazista.

“Sim, meu pai viu o filme, que considerou uma obra-prima. Foi duro para ele assisti-lo, justamente por ter tentado fazer algo tão bom quanto. Mas ‘A Vida é Bela’ foi uma espécie de vingança dele, por provar o que o meu pai já sabia: que era possível misturar comédia e Holocausto”, diz o herdeiro.

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