Naquela quarta-feira, 3 de novembro de 2010, o “The Daily Campus”, jornal da Southern Methodist University, de Dallas, deu espaço em suas páginas ao projeto de uma aluna da instituição: a Tender Heart, linha de roupas produzidas no Nepal, para jogar luz sobre o tráfico humano e o comércio justo.
Não era o primeiro empreendimento de Whitney Wolfe Herd. Meses antes, ela criara a “Help Us Project”, que vendia sacolas de bambu orgânico. A receita era revertida para a Ocean Futures Society e a iniciativa chamou a atenção de celebridades como a atriz Denise Richards e a estilista Rachel Zoe.
No último dia 27 de abril, Herd voltou à mídia. Desta vez, porém, com um alcance muito mais amplo. Fundada por ela, em 2014, a Bumble, dona de um app homônimo de relacionamentos no qual as mulheres dão o primeiro passo, foi incluída na lista das 100 empresas mais influentes da revista Times.
A entrada nesse seleto clube coroou a ascensão da Bumble. Em fevereiro, a empresa captou US$ 2,2 bilhões em um IPO na Nasdaq e foi avaliada em US$ 7,7 bilhões. Herd, aos 31 anos, ganhou as manchetes ao se tornar a mulher mais jovem a liderar a abertura de capital de uma empresa nos Estados Unidos. E, não bastasse esse feito, a bilionária mais jovem (não herdeira) do mundo.
“Foi um processo muito exaustivo”, diz Herd, em entrevista em videocall, exclusiva ao NeoFeed. “Mas foi gratificante ver que você pode ir de uma ideia que as pessoas não necessariamente entendem ou acreditam a um IPO em seis anos.”
A jornada até tocar a campainha na Nasdaq foi marcada, de fato, por percalços. Alguns deles, anteriores à Bumble. Um desses capítulos envolveu o popular aplicativo de encontros Tinder, que ela ajudou a fundar em 2012 e no qual ocupava o posto de vice-presidente de marketing.
Em 2014, Herd processou seus ex-colegas e a empresa por assédio sexual. E alegou que era alvo constante de comentários que desdenhavam da sua capacidade e reduziam sua importância na operação. O caso foi encerrado com um acordo de US$ 1 milhão e uma quantia de ações do Match Group, a dona do Tinder.
“As pessoas diziam que eu não era capaz e inteligente”, diz Herd, sobre os desafios que enfrentou durante toda a sua trajetória. Ela ressalta, porém, que é grata por tudo o que aconteceu nesse percurso. “Os momentos mais sombrios também ajudaram a definir quem eu sou e a traçar o meu caminho.”
Fundador e analista-chefe da consultoria americana, Roger Kay destaca justamente a evolução da empresária. “Depois do Tinder, ela assumiu a Bumble e demonstrou ser uma especialista nesse tema e uma capacidade forte de gestão”, afirma. “Essa é uma receita excelente para qualquer CEO.”
Essas experiências não foram a única fonte de inspiração para o desenvolvimento dessa personalidade e do conceito por trás do aplicativo que, assim como os primeiros projetos da empreendedora americana, também é guiado por um propósito.
“Eu sentia que a internet era um lugar muito tóxico, que alimentava a cultura de abuso e do ódio”, explica. “E realmente detestava que as mulheres estivessem sempre no banco do passageiro quando se tratava de relacionamentos.”
Na busca por um contraponto a esse cenário, a ideia inicial era criar uma rede social restrita a mulheres. O projeto tomou um rumo diferente quando Herd se associou ao bilionário russo Andrey Andreev, cofundador do Badoo, outro app de encontros, que hoje também está sob o guarda-chuva da Bumble.
As mulheres ocupam mais de 50% dos cargos de liderança e 8 dos 11 assentos do Conselho de Administração da empresa. O board conta com nomes como Ann Mather, ex-CFO dos estúdios Pixar, e Pamela Graham, ex-CEO da rede CNBC
Com um aporte inicial de US$ 10 milhões de Andreev e encorajada pelo novo sócio, ela decidiu retornar ao jogo dos apps de encontro. Mas fez isso invertendo os ritos tradicionais nesse espaço, ao colocar nas mãos das mulheres a decisão de quando, como e com quem iniciar as conversas.
“A internet foi inventada e é controlada por homens. E tudo bem. Há produtos excelentes que foram criados por eles”, diz Herd. “Mas a realidade é que metade do nosso planeta é feminino. Essa é a lacuna que o Bumble vem tentando preencher”, acrescenta ela sobre o app que tem 42 milhões de usuários.
Essa mesma abordagem é adotada dentro da companhia. As mulheres ocupam mais de 50% dos cargos de liderança e oito dos 11 assentos do Conselho de Administração da empresa. O board conta com nomes como Ann Mather, ex-CFO dos estúdios Pixar, e Pamela Graham, ex-CEO da rede CNBC.
Na contramão das estatísticas
Com o modelo da Bumble, Herd está desafiando não apenas os ritos e a dinâmica dos relacionamentos entre mulheres e homens. Mas também, algumas das diversas estatísticas que traduzem a ainda baixa participação feminina em diversas esferas do mercado.
De acordo com a consultoria americana Pitchbook, as startups fundadas por mulheres atraíram 13% do total de cheques assinados na indústria de venture capital em 2020. Já um estudo da corretora Stake mostra que 6,4% das empresas do S&P 500 têm mulheres como CEOs.
Segundo a agência Bloomberg, somente três das 559 companhias que abriram capital nos Estados Unidos nos doze meses anteriores a fevereiro de 2021 foram fundadas por empreendedoras. Ao mesmo tempo, menos de 5% das 500 maiores fortunas do mundo estão nas mãos das chamadas “self-made” women.
Herd viu seu patrimônio ser elevado a US$ 1,6 bilhão com o IPO da companhia. Além de passar a integrar mais uma lista: a relação da revista Forbes com as 100 mulheres mais ricas que construíram, sozinhas, suas fortunas.
Entretanto, ela prefere destacar outra questão na trajetória cumprida pela Bumble até o IPO. “É muito triste ser um dos poucos exemplos”, afirma. “Espero que todos possam ver isso como uma oportunidade de dizer: uau, as mulheres podem conduzir grandes negócios.”
Até aqui, Wall Street está comprando essa ideia. Os papéis da Bumble, avaliada em US$ 9,8 bilhões, acumulam uma alta de 23,5% em relação ao preço definido no IPO que, por sua vez, já havia superado a faixa indicativa em virtude da demanda dos investidores.
As perspectivas para o segmento dos chamados dating apps ajudam a explicar essa boa receptividade à companhia. Segundo a consultoria OC&C, esse mercado movimentou US$ 5,3 bilhões em 2020, impulsionado pela pandemia. E a projeção é que ele alcance uma receita de US$ 9,9 bilhões em 2025.
Segundo a consultoria OC&C, o mercado de aplicativos de encontro deve movimentar US$ 9,9 bilhões em 2025
Para capturar parte dessas cifras, a Bumble aposta no modelo freemium. Ou seja, os usuários pagam por planos de assinatura, com diferentes prazos de validade, para ter acesso a recursos mais sofisticados no aplicativo.
No Brasil, os planos Boost, por exemplo, partem de R$ 20,90, nesse caso, com validade por uma semana. Entre as funções incluídas estão a possibilidade de retomar uma conexão cujo prazo de 24 horas já expirou e curtidas ilimitadas.
Já o preço inicial do plano Premium, também para uma semana, é de R$ 42,90. Além de todos os recursos dos planos Boost, essas modalidades trazem mecanismos como o modo invisível, onde o usuário pode ser visto apenas por quem curtiu o seu perfil.
Levando-se em conta o Bumble e o Badoo, a empresa registrou um salto de 22% na base de usuários pagantes em 2020, para 2,7 milhões. No período, a receita cresceu 19%, para US$ 582,1 milhões. A companhia teve uma perda de US$ 142,7 milhões, contra um lucro de US$ 85,8 milhões, um ano antes.
“Whitney fez um excelente trabalho ao posicionar a Bumble no mercado”, diz Roger Kay, analista da consultoria americana Endpoint. “O mercado de dating apps é altamente competitivo, mas a empresa tem um nicho único e que parece ser defensável por enquanto.”
Há, no entanto, quem vá na direção contrária. “Quando se associa ao seu mantra, a Bumble está restringindo o seu mercado, de forma desnecessária”, afirma Daniel Domeneghetti, CEO da E-Consulting. “E o problema do capitalismo de stakeholder é que você precisa fazer dinheiro para sustentar sua narrativa, porque, no fundo, é um negócio.”
Com a cifra captada no IPO, um dos planos da Bumble é investir em marketing e produto para começar justamente a impulsionar recursos mais recentes, que ampliam o escopo do aplicativo. Integram esse portfólio o Bumble BFF, voltado a amizades, e o Bumble Biz, que se aproxima do modelo proposto pelo LinkedIn, de networking profissional.
Outro destino do montante é estender o foco a países que ainda não foram alvos de estratégias e investimentos da empresa, apesar de já contarem com usuários do aplicativo. Esse roteiro inclui Europa, Ásia e mercados como o Brasil.
Um primeiro passo para ilustrar a maior atenção ao País foi dado em março desse ano, com a criação de uma equipe de marketing dedicada exclusivamente à América Latina, com grande foco no Brasil, que atua a partir da sede da companhia, em Austin, no Texas. (EUA).
“Pelo que ouço das amigas que tenho no País, as brasileiras são empoderadas, fortes, inteligentes e ousadas”, afirma Herd. “Será interessante vê-las assumindo esse protagonismo, pois, assim como em outros países, ainda existem tradições arcaicas que comandam as relações no Brasil.”
Embora não revele números, Herd ressalta que o Bumble já conta com uma base significativa de usuários no País. E que a empresa tem um bom conhecimento das dinâmicas do mercado local, a partir de dados capturados pelo Badoo, o outro aplicativo do grupo.
Além dos encontros
Enquanto prepara a expansão do Bumble, Herd entende que, ao estimular que as mulheres tomem a iniciativa, a empresa pode exercer uma influência mais ampla. “Estamos tentando usar a plataforma para inspirá-las e apoiá-las de uma maneira que vai muito além de um app de namoro”, diz.
Uma das iniciativas nessa direção é o Bumble Fund. Lançado em 2018, o corporate venture capital lançado pela companhia em 2018 mira empresas em estágio inicial fundadas e lideradas por mulheres negras ou por outros grupos pouco atendidos pelo ecossistema de capital de risco.
A empresa registrou um salto de 22% na base de usuários pagantes em 2020, para 2,7 milhões
Com cheques que variam de US$ 25 mil a US$ 50 mil e a tenista Serena Willians entre seus investidores, o Bumble Fund já fez aportes em startups como o aplicativo de saúde Kiira Health e a Transalator LLC, de sistemas de treinamento em diversidade e inclusão.
“Pode haver mais 100 Bumbles por aí”, afirma Herd. “Só precisamos encontrar essas mulheres e colocar dinheiro, confiança e convicção em suas mãos.”