Um dos assuntos que mais me empolgam é a aplicação da Inteligência Artificial em saúde. Estou bastante envolvido com projetos de inovação e startups no setor e tenho estudado e refletido bastante sobre o tema.

Assim, começo uma série de seis artigos onde pretendo dar uma panorâmica das minhas percepções do uso de IA no setor. Confesso que um dos livros que mais me inspiraram e que recomendo fortemente é Deep Medicine, de Eric Topol. Se você se interessa pelo assunto, o livro é obrigatório.

IA está no centro das atenções. Muito se espera dela, mas como sempre, existem muitas expectativas que ainda levarão tempo para se materializar. IA não é novidade, pois conceitualmente surgiu com um paper de Alan Turing, em 1936. E uma dos clássicas referências foi um posterior paper dele, em 1950, “Computing Machinery and Intelligence”.

O próprio termo “Inteligência Artificial” foi cunhado em 1955, por John McCarthy. Mas sua evolução foi acelerada com o desenvolvimento dos métodos de Deep Learning (DL). DL mudou o patamar da aplicabilidade da IA, tornando possível aplicações que existiam apenas no campo da ficção científica.

Entretanto, IA ainda está na sua infância. Provavelmente podemos considerar o status de IA como a internet 20 anos atrás. Lembram? A Amazon era basicamente uma livraria online, o Google tinha sido recém-lançado e o iPhone não existia. A internet era usada apenas em desktops. Hoje, o mundo está diferente e fazemos coisas impensáveis no ano 2000. IA estará, em 2040, fazendo coisas impensáveis hoje.

Em saúde, a aplicação de IA está começando e seu potencial, apesar das limitações atuais, é imenso. O setor de saúde apesenta muitos desafios e é bem problemático. É um setor em que os seus atores vivem em conflito e o sistema como um todo, não funciona de forma eficiente.

As relações médico e paciente são desconectadas, com a imensa maioria dos médicos estressados e pressionados, dispensando pouco tempo na pessoa do paciente em si e apenas olhando exames e prescrevendo medicamentos. Estes contatos esporádicos e superficiais provocam erros de diagnósticos e acabam incentivando exames e prescrições desnecessárias e supérfluas.

A cada três minutos, cerca de dois brasileiros morrem em um hospital por consequência de um erro que poderia ser evitado

Em hospitais a situação é bem pior. Os números são alarmantes. A cada três minutos, cerca de dois brasileiros morrem em um hospital por consequência de um erro que poderia ser evitado. Esta foi a conclusão de um estudo apresentado em 2016 no Seminário Internacional “Indicadores de qualidade e segurança do paciente na prestação de serviços na saúde”, realizado em São Paulo.

Essas falhas, chamadas de “eventos adversos”, representam problemas como que vão desde erro de dosagem ou de aplicação de medicamentos até uso incorreto de equipamentos e infecção hospitalar.

A pesquisa, realizada pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pelo Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (Iess), estima que, em 2015, essas falhas acarretaram em 434 mil óbitos, o equivalente a 1 mil mortes por dia. Erros de diagnóstico também são comuns em outros países.

Uma pesquisa feita nos EUA, “The frequency of diagnostic errors in outpatient care: estimations from three large observational studies involving US adult populations”, mostrou que cerca de 12 milhões de diagnósticos errados são feitos a cada ano no país.

A solicitação de exames supérfluos também é altíssima. Nos EUA, uma pesquisa “Use of Advanced Imaging Tests and the Not-So-Incidental Harms of Incidental Findings” mostrou que de 50% a 80% dos exames de tomografia computadorizada são desnecessários.

No Brasil, em 2017, a ANS publicou que médicos brasileiros pedem mais exames de tomografia e ressonância do que profissionais de países desenvolvidos. Um artigo publicado na renomada The Lancet, “Evidence for overuse of medical services around the world”, mostrou que uso de procedimentos médicos desnecessários ocorre em muitos países. É um sintoma de quão problemática se encontra a medicina atual.

A culpa não é dos mais de 430 mil médicos que existem no país, mas do sistema como um todo. O médico sai da faculdade com a noção de “curar a doença”, é pressionado profissionalmente pelo modelo econômico do setor e realiza consultas rápidas e superficiais.

Além disso, tem dificuldades em se reciclar e sua especialização excessiva o leva a ignorar outros sinais no paciente. Assim, uma pessoa com um determinado problema acaba se consultando com vários especialistas, realizando exames desnecessários e recebendo carga excessiva de prescrições de drogas.

Quando você visita um médico, provavelmente assume que o tratamento recebido é respaldado por evidências de pesquisas médicas. Certamente, o medicamento que ele receitou ou a cirurgia que você fará é respaldado por pesquisas sólidas. Nem sempre. Às vezes, os médicos simplesmente não acompanham a evolução da ciência.

O ritmo de trabalho intenso e a rápida evolução da medicina fazem com que muitos médicos continuem recomendando exames e medicamentos baseados em conhecimentos que já se tornaram obsoleto

Alguns procedimentos são implementados com base em estudos que não provam que eles realmente funcionaram. Outros foram inicialmente apoiados por evidências, mas depois foram contraditados por melhores evidências, e ainda assim esses procedimentos continuam nos protocolos de atendimento por décadas. Um artigo instigante, que aborda este contexto, e que merece ser lido atentamente, é “When Evidence Says No, but Doctors Say Yes”.

O ritmo de trabalho intenso e a rápida evolução da medicina fazem com que muitos médicos continuem recomendando exames e medicamentos baseados em conhecimentos que já se tornaram obsoletos. Por exemplo, um estudo “Pathways of parallel progression” (e vários outros) desafiam o dogma da oncologia que um câncer leva muito tempo para evoluir e que quanto mais rápido for detectado, maiores as chances de eventual cura. Não necessariamente.

Existem muitos casos que a evolução é extremamente rápida, demonstrando que a capacidade médica em fazer previsões baseadas em conhecimentos e práticas consolidadas não necessariamente reflete o estado-da-arte da medicina atual. No meio médico é comum dizer-se que em cinco anos cerca de 50% do que se aprende na faculdade fica obsoleto ou está errado.

Além disso, a excessiva confiança na eficácia dos medicamentos provoca uma dependência muito grande na prescrição de drogas como solução para os problemas de saúde. A aplicação de drogas tem eficácia muito abaixo do esperado. Em muitos casos sua eficácia é menor que 25%.

Artigo publicado na Nature, “Personalized medicine: Time for one-person trials”, mostra, em pesquisa feita nos EUA, com medicamentos blockbuster, que em alguns deles, cerca de 75% dos pacientes que os tomam não conseguem resultados adequados.  A razão é simples: as pessoas têm metabolismos diferentes, hábitos de vida diferentes e reagem de forma diferente à uma determina droga.

Um exemplo disso foi um estudo por um hospital sueco com mais de 9 mil pacientes com pressão alta, designados aleatoriamente para tomar atenolol ou um medicamento concorrente que foi projetado para diminuir a pressão arterial.

O grupo concorrente teve menos mortes (204) do que o grupo atenolol (234) e menos derrames (232 em comparação com 309). Mas o estudo também descobriu que os dois medicamentos baixaram a pressão sanguínea exatamente na mesma quantidade. Então, por que o atenolol não salvou mais pessoas?

Esse estranho resultado levou a um estudo subsequente, que comparou o atenolol com as pílulas de açúcar. O estudo descobriu que o atenolol não impediu ataques cardíacos ou prolongou a vida. Apenas baixou a pressão sanguínea.

Uma análise de ensaios clínicos - incluindo oito ensaios clínicos randomizados, compreendendo mais de 24 mil pacientes - concluiu que o atenolol não reduziu ataques cardíacos ou mortes em comparação com nenhum tratamento. Os pacientes com uso de atenolol apenas tiveram melhores números de pressão arterial quando faleceram...

A IA pode e provavelmente vai se tornar o novo estetoscópio. Fará parte do dia a dia da medicina

Analisando este contexto, fica claro que precisamos salvar a medicina. Ela em si está doente. É onde entra a IA. Ela pode ajudar em muito a melhorar a prática médica. Não é a substituição do médico por robôs, mas da possibilidade de tirarmos os robôs de dentro dos médicos. É uma complementação da prática médica.

Com menos atividades robóticas, ela passará a ter condições de estreitar relações mais humanas e empáticas com seus pacientes. Nós já usamos IA em muitas atividades do nosso dia a dia. Recomendações de filmes e músicas, buscas no Google, reconhecer colegas em fotos no Facebook e assim por diante. Creio que devemos usar com mais intensidade a IA para as coisas que realmente importam, como nossa saúde.

A medicina caminha na direção de ser personalizada, focada na saúde e não na doença, com interação contínua e não esporádica entre médicos e pacientes, e principalmente, em uma relação empática e humana entre pessoas, estejam elas com jalecos ou em bermudas. A IA pode e provavelmente vai se tornar o novo estetoscópio. Fará parte do dia a dia da medicina.

No próximo artigo vou debater como IA poderá ajudar nos diagnósticos médicos, reduzindo sua taxa de erros. Claro, que vamos analisar não apenas o potencial, mas as suas atuais limitações. Uma IA com assertividade fantástica em ambiente controlado não terá o mesmo desempenho no mundo real. Vamos discutir IA sim, mas sem ufanismo ou ceticismo. Vamos ser realistas.

*Cezar Taurion é Partner e Head of Digital Transformation da Kick Corporate Ventures e presidente do i2a2 (Instituto de Inteligência Artificial Aplicada). É autor de nove livros que abordam assuntos como Transformação Digital, Inovação, Big Data e Tecnologias Emergentes. Professor convidado da Fundação Dom Cabral. Antes, foi professor do MBA em Gestão Estratégica da TI pela FGV-RJ e da cadeira de Empreendedorismo na Internet pelo MBI da NCE/UFRJ