Com a liderança política adequada, o Brasil tem chances de promover, a partir do ano que vem, uma estratégia urgente de crescimento sustentado, com maior investimento público, revisão de prioridades de gastos e aumento de impostos sobre pessoas e empresas hoje privilegiadas por benefícios fiscais, afirma o sócio-fundador da Gávea Investimentos e ex-presidente do Banco Central Arminio Fraga.

“Não é possível nem desejável desenvolver o país sem investimento público”, diz Fraga, que explicou, ao NeoFeed, sua proposta de revisão de prioridades no orçamento, e defende fechar as brechas existentes no sistema tributário que beneficiam a alta renda.

“Não dá para profissionais liberais que ganham R$ 400 mil por mês pagarem 5% de imposto se forem advogados; não dá para ter regime de lucro presumido para certas atividades que também leva a alíquotas de IR baixíssimas”, afirma.

Fraga critica o chamado teto de gastos, que impôs limites às despesas públicas, mas foi manipulado e rompido para atender a interesses eleitorais do governo. Defende, porém, sua manutenção, com ajustes.

Na entrevista exclusiva ao NeoFeed, cujos principais trechos publicamos a seguir, lembra seu apoio à candidatura da senadora Simone Tebet à presidência e diz ser possível ver suas ideias aplicadas em um eventual governo Luís Inácio Lula da Silva. Já com a reeleição de Jair Bolsonaro, admite: “ficaria bem mais preocupado”.

Pelos últimos dados da dívida pública e das contas fiscais, a situação não está melhor do que se pensava, quando se temia uma bomba-relógio para o próximo governo?
Conjunturalmente, talvez, mas há muitos desequilíbrios preocupantes, de naturezas diversas. Temos um teto de gastos que não diria ter virado uma peneira, mas foi perfurado; tem do outro lado um impacto grande da inflação nos salários, assim, como, pelo lado da receita, a contribuição dos preços das commodities. Vamos supor que o ano termine com o saldo primário (nas contas públicas) mais ou menos zerado; temos problemas muito sérios de gastos reprimidos, prioridades que precisam ser revisitadas, por aí vai.

Quais gastos foram mais reprimidos?
Salários, gastos em algumas áreas tipicamente ligadas a investimentos também muito represadas. A composição do gasto também me preocupa bastante: quase 80% do gasto vai para a folha de pagamentos e previdência e esse é um número completamente fora da qualquer curva do mundo, sugere que algum rearranjo precisa ocorrer. Houve uma compressão nos gastos com folha de pagamentos do governo federal, mas se olhar o setor público, como um todo, ainda não.

Havia a ideia de que o teto de gastos obrigaria a uma revisão das prioridades, o que não aconteceu, houve furos e represamento. Não é hora de tentar um mecanismo mais eficiente?
O teto foi uma ideia arrojada, com um viés otimista, mas foi uma tentativa válida. Ocorreu a reforma da Previdência. Foi desidratada aqui e ali, não resolveu o problema, mas foi um passo relevante. No geral, não é fácil, é um trabalho provavelmente de uma década, a partir do dia em que o teto começar para valer.

Deve se manter o teto, então?
Escrevi, no passado, que o teto era, em longo prazo, apertado demais, porque, implícito nele, estava uma redução do tamanho do Estado exagerada: se o PIB crescesse a 2,5% ao ano, teria, em 10 anos, uma queda de mais de 25% na relação gasto federal/PIB. Deveria ter um teto um pouco mais folgado, mas trabalharia com algum teto sim, não dá para o gasto crescer para sempre como proporção do PIB. E acredito que, em curto prazo, deveria ter um esforço fiscal maior. O país precisa voltar a ter superávit primário positivo como uma das formas de ter uma taxa de juros mais normal. É extremamente difícil, o gasto público é muito engessado. Mas espaços existem.

“A composição do gasto também me preocupa bastante: quase 80% do gasto vai para a folha de pagamentos e previdência e esse é um número completamente fora da qualquer curva do mundo”

Por gasto tributário, você se refere a regimes especiais, como Zona Franca de Manaus Simples; haveria disposição de mexer nisso?
Falta um processo de discussão aberto, que tem de vir de cima, com a força da liderança, de alguém eleito, que diga à população, aos formadores de opinião: “olha, gente, não dá para profissionais liberais que ganham R$ 400 mil por mês pagarem 5% de imposto se forem advogados, ou 10% os outros; não dá para ter regime de lucro presumido para certas atividades que também leva a alíquotas de IR baixíssimas”.

Há muitos que estão nesses regimes e têm renda efetivamente baixa...
Lá atrás, a ideia era: tirar da informalidade muita gente que pagava zero de imposto. Os limites foram aumentando, mas hoje o governo tem uma enorme capacidade de identificar os fluxos de dinheiro. Não há mais justificativa. Outro aspecto mal entendido diz respeito às pequenas empresas. Não faz sentido privilegiar as empresas pequenas; pode haver espaço para tratamento diferente a empresas novas, elas sim têm um papel importante para o dinamismo de uma economia.

Como o governo poderia trabalhar com “metas de superávits críveis”, como defende, se só para manter a relação dívida pública/PIB teria de manter um superávit de quase 3% anuais?
Defendo a ideia de planejamento plurianual, com um orçamento que, além de mandatório, tivesse muito menos vinculações (de receita a despesas específicas) e mais espaço de manobra. Num orçamento mais flexível, que ficasse nas mãos do Congresso, seria fundamental espaço para gastos plurianuais que dessem a certas atividades, a certos investimentos, horizonte de tempo necessário.

“Não faz sentido privilegiar as empresas pequenas; pode haver espaço para tratamento diferente a empresas novas”

Concretamente, o que se pode fazer em investimento público?
Não é possível nem desejável desenvolver o país sem investimento público. Considero Saúde e Educação investimento público da mais alta qualidade e vejo espaço para aumentar. Educação é problema bem complexo, muitas áreas precisam passar por readequação, mas é possível que se precise gastar um pouco mais; na Saúde, não há dúvida: o SUS mostrou seu valor nessa crise; o Brasil precisa cuidar disso. Mas as áreas clássicas também: temas ligados diretamente à produtividade, todo o mundo da ciência básica, vários aspectos da infraestrutura que exigem presença do Estado, às vezes por questões regionais, às vezes, de natureza distributiva.

Como se faz isso?
Acho interessante pensar no orçamento como uma grande contabilidade de usos e fontes. Quais seriam as fontes para se gastar mais dando preferência a investimentos e gastos sociais? O Brasil é um ponto fora da curva na folha de pagamentos do setor público, na Previdência, e nos chamados gastos tributários. Se cada um desses pudesse contribuir com 3% do PIB, mais uns 2% do BNDES (já ajustados), no limite sobrariam uns 9% do PIB para um trabalho estratégico, que permita de fato desenvolver o Brasil de forma sustentável e equitativa. E é preciso um governo que não tome tanto dinheiro emprestado, não ponha tanta pressão na taxa de juros. Onde existe divergência de opinião talvez seja nos juros; tem gente que acha possível baixar na marra a taxa... mas já vimos esse filme, o final nunca é feliz.

Como funcionaria na prática?
Em vez de ficar só fazendo um orçamento que vem das bases, que sempre vai existir e é desejável que exista – hoje, infelizmente, é até secreto, que dá no que dá, como se vê nas notícias recentes sobre gastos na Saúde – precisa ter também um olhar estratégico, que explicite para onde está indo nosso dinheiro, quanto vai para educação, saúde, previdência, assistência social.

“Não é possível nem desejável desenvolver o país sem investimento público. Considero Saúde e Educação investimento público da mais alta qualidade e vejo espaço para aumentar”

Na redefinição das prioridades do setor público, por onde começaria?
Escrevi um artigo há uns três anos na revista Novos Estudos, do Cebrap. Nele, fiz essa contabilidade de usos e fontes, listei todas as fontes possíveis, na linha do que disse acima, inclusive dando destaque a uma noção básica, a autoridade moral para fazer propostas ousadas. Por exemplo, tem brechas nas regras de imposto de renda que precisam ser atacadas, por questões de natureza moral mesmo.

Por exemplo?
Gente que ganha essa fortuna, pagando pouco imposto. A tributação da renda do capital é muito favorecida também. Está errado.

Tributos sobre dividendos, por exemplo?
É uma excelente questão. A integração da tributação da empresa e a da pessoa física é inteligente e faz sentido. Mas ter regimes especiais de IR, como o Simples, o Lucro Presumido, onde na empresa se paga pouco, e ter o dividendo isento, essa combinação é mortal, precisa acabar. Qual a alíquota máxima do imposto, essa é outra boa questão.

“A tributação da renda do capital é muito favorecida também. Está errado”

Voltando ao artigo sobre usos e fontes...
Sobre receitas adicionais, minha preferência seria não usar muito, ou talvez nada dessa receita para reduzir o tamanho do Estado, a carga tributária, no curto prazo. Essa discussão deveria ocorrer de maneira mais explícita, como citei, em saúde, ciência básica, tecnologia, alguns aspectos da infraestrutura com clara justificativa genuinamente desenvolvimentista, bem pensada... E, quanto ao gasto, não há saída para nós sem ter uma relação dívida/PIB mais baixa e com um Estado, inclusive, com capacidade de fazer política anticíclica, que nos foi negada em boa parte de nossa História. Depois que a dívida passou a ser interna, ficou mais viável, mas acho que esse arcabouço precisa ser desenhado. Não dá para viver com uma taxa básica de 6% em termos reais.

Com esses candidatos favoritos na disputa à Presidência e o poder do Centrão, você vê possibilidade de apoio político capaz de levar à frente essas propostas que você levanta?
Sim, vai depender da liderança que vem de cima. Uma presidente eleita com ideias razoáveis e corajosas, presidindo um país cheio de oportunidades para melhorar como o nosso, poderia apresentar uma estratégia de desenvolvimento viável. Se a estratégia for bem desenhada, geraria crescimento, o que facilitaria tudo. O que não dá é repetir os últimos quarenta anos com crescimento, em geral, muito baixo. A receita para o país voltar a crescer é fazer um desenho ambicioso, de médio prazo e começar a executar nessa direção que mapeamos aqui, e, com isso, acho que o Centrão pode vir a apoiar. Não tentamos isso, ainda.

Vendo os favoritos nas pesquisas eleitorais, você vê chance de haver essa liderança?
Tenho apoiado a candidatura da senadora Simone Tebet. Sessenta dias é um período muito longo. Não sendo ela, o favorito hoje parece ser o ex-presidente (Luís Inácio Lula da Silva); se ele voltar com a versão Lula um ponto zero, as coisas podem melhorar, sobretudo se vierem sem os defeitos públicos e notórios que conhecemos. Se houver reeleição, eu ficaria bem mais preocupado.