No universo de bebidas premium, edições limitadas que custam pequenas fortunas não são raridade. É o caso do Hennessy 8, que presta presta tributo aos 250 anos, completados em 2015, da célebre marca de conhaques francesa e à última troca de comando da maison. Em 2017, saiu a sétima geração da família de master blenders responsável pelo destilado e entrou a oitava, representada por Renaud Fillioux de Gironde.

Do Hennessy 8, elaborado com lotes raros de conhaque, foram produzidas apenas 250 garrafas – desenvolvidas pelo designer e artista israelita Arik Levy, remetem à arte cinética. Numeradas, foram despejadas no mercado a partir de 2020 e custam cerca de US$ 90 mil cada uma – são US$ 3,6 mil por cada dose.

As garrafas de número 1 e 250, no entanto, ganharam preços ainda mais elevados: o conjunto está à venda por US$225 mil, aproximadamente, o equivalente a mais de R$1 milhão. Como se trata de um leilão, leva quem der o maior lance (ainda não houve interessados).

Essas duas garrafas são mais caras porque estão atreladas a um NFT — em português, significa token não fungível. Trata-se de uma tecnologia de certificação similar à utilizada por criptomoedas como Bitcoin e Ethereum.

No caso de obras de arte digitais, o NFT serve para dizer qual é a verdadeira. Afinal, qualquer uma pode ser contemplada na internet e até impressa com uma resolução mínima. Por outro lado, só quem detém o NFT de uma obra do tipo pode revendê-la — também chamado de certificação digital, ele equivale à escritura de um imóvel.

Controlada pela LVMH, a Hennessy recorreu aos NFTs de outra maneira. O certificado digital que a marca pôs à venda corresponde, de fato, a duas garrafas físicas cheias de um conhaque fora de série.

Quem arrematá-las ainda terá direito a um case que se abre com uma chave imponente, a quatro taças de cristal feitas de maneira artesanal e a uma placa de autenticação assinada por Yann Filloux, o antecessor de Renaud.

Outro detalhe importante: os compradores só poderão pôr as mãos nas duas garrafas se decidirem resgatar o certificado digital atrelado a elas. Até que isso ocorra, elas ficam trancafiadas num depósito de alta segurança em Cingapura que pertence ao BlockBar, a primeira plataforma de venda de NFTs do universo das bebidas.

No ar desde o final de 2021, o site só vende produtos exclusivos, desenvolvidos em parceria com marcas que dispensam apresentações como Dalmore, Ardbeg e Glenfiddich.

Desta última, o BlockBar vendeu 15 garrafas de um uísque de 46 anos a cerca US$18 mil dólares a unidade – o leilão durou apenas quatro segundos. Da Johnnie Walker, pôs à venda sete garrafas que mesclam uísques maturados por no mínimo 48 anos. Os lances iniciais rondam os US$34 mil.

Como no caso do Hennessy 8, as aquisições são mantidas no tal depósito em Cingapura. Faz sentido. Muita gente que adquiriu algum produto no BlockBar já decidiu revendê-lo — obviamente por um preço bem mais elevado, como é de praxe no mundo dos NFTs.

A plataforma também se aliou a vinícolas, a exemplo da Penfolds, uma das mais antigas da Austrália. Dela, comercializa o Magill Cellar 3 2018, um blend de Shiraz e Cabernet Sauvignon. Cada garrafa, de um lote com 300 unidades, custa U$ 465.

No mês que vem, entra no ar a primeira plataforma dedicada exclusivamente a vinhos finos, a Wokenwine. Diferentemente da BlockBar, não almeja edições limitadas, criadas para alcançar cifras estratosféricas no inacreditável mercado de NFTs. O intuito dela é recorrer a esses certificados para atestar a procedência de vinhos caros.

O renomado Domaine du Comte Liger-Belair, da Borgonha, anunciou que vai se aliar à nova plataforma. Por meio dela, pretende vender toda a safra de 2020. “É necessário dar integridade à rastreabilidade e lutar contra as falsificações”, declarou Louis-Michel Liger-Belair, dono da vinícola, justificando a decisão.

Com certificados digitais, invioláveis, o segmento poderá dar fim a falcatruas como as perpetradas por Rudy Kurniawan. Apresentando-se como um colecionador com uma queda pela Borgonha, o indonésio despontou no circuito americano em meados dos anos 2000, quando tinha 20 e poucos anos.

Não demorou para trapacear uma porção de milionários que compraram como se fossem vinhos raríssimos os blends que ele misturava na cozinha da própria casa, num subúrbio de Los Angeles. Quando o FBI invadiu o endereço, em 2012, na época em que o falsário foi preso, encontrou sacolas cheias de rolhas velhas, garrafas vazias e pilhas de rótulos.

Tinha até receitas para imitar vinhos antigos de Bordeaux, a exemplo do icônico Mouton-Rothschild de 1945. Quer tentar em casa? Kurniawan usava meia garrafa de Pichon-Lalande, um quarto de cabernet sauvignon de Napa Valley e o mesmo tanto de um bordeaux oxidado.

Condenado a 10 anos de prisão — e a pagar multa de US$ 20 milhões, além de US$ 28 milhões às vítimas —, ele foi solto em 2020 e deportado em seguida dos Estados Unidos, onde, nos tempos áureos, estava ilegalmente.

As garrafas que comercializou em 2006 por meio da casa de leilões Acker Merrall & Condit, por exemplo, renderam US$ 24,7 milhões. Estima-se que muitos dos vinhos que Kurniawan despejou no mercado continuem insuspeitos e incensados. O NFT, sustentam os entusiastas da novidade, teria deixado o falsário — e qualquer outro — de mãos atadas.

Convém registrar que o mercado global de vinhos, de acordo com a Statista, deve movimentar US$ 420 bilhões neste ano. Já as vendas de NFTs — que começaram agora há pouco, mas crescem vertiginosamente — atingiram US$ 1,2 bilhão no primeiro semestre de 2021, segundo a mesma plataforma. Combinados, esses dois universos — assim como o das bebidas etílicas — podem gerar cifras ainda maiores.