A presença de microplásticos no sangue humano, detectada recentemente por cientistas holandeses, ressoa de modo sinistro no último filme de David Cronenberg. Para o canadense acostumado a perturbar a mente do espectador, sobretudo com deformações no corpo dos seus personagens, não seria estranho se o estômago humano simplesmente começasse a digerir plástico.

É exatamente o que acontece na sociedade distópica apresentada em “Crimes of the Future”, ficção científica que chega aos cinemas em 14 de julho e no catálogo da MUBI em 29 de julho. E o mais curioso é que essa história de natureza quase apocalíptica passou 20 anos na gaveta do cineasta, mais conhecido por “A Mosca” (1986), “Crash: Estranhos Prazeres” (1996) e “EXistenZ” (1999).

“Quando escrevi o roteiro, ninguém falava de microplásticos no sangue, o que ultimamente se tornou um assunto da moda”, disse Cronenberg, em Cannes, durante encontro com a imprensa, que teve a cobertura do NeoFeed. Foi na Riviera Francesa, na 75ª edição do festival, que “Crimes of the Future” fez a sua première mundial, concorrendo à Palma de Ouro.

“Sabemos que os microplásticos são encontrados no sangue de muitas pessoas. E já existe a consciência de que provavelmente 80% da população da Terra tenha plástico como parte de sua carne”, contou o diretor, de 79 anos.

A pesquisa divulgada em março deste ano, conduzida pelo ecotoxicologista Dick Vethaak, da Vrije Universiteit de Amsterdam, foi a primeira indicação de poluição microplástica no homem. Como as partículas viajando pelo sangue podem penetrar e se alojar em órgãos, isso preocupa os cientistas, apesar de os efeitos sobre a saúde serem ainda desconhecidos. No estudo, os microplásticos foram detectados em quase 80% das pessoas testadas.

Logo nos primeiros minutos de “Crimes of the Future”, um menino já aparece comendo as bordas de um balde de plástico, o que leva a sua mãe a matá-lo, por considerá-lo uma aberração.

Seu corpo é então levado por seu pai a um casal de artistas performáticos (vividos por Viggo Mortensen e Léa Seydoux) que fazem cirurgias, cortando tumores humanos diante da plateia. Aqui a ideia será realizar uma autópsia pública do menino comedor de plástico, em um mundo que vê a mutação como forma de arte.

O diretor David Cronenberg: no lugar de eliminar o plástico, a incorporação do plástico

“O filme faz uma sugestão satírica. No lugar de salvarmos a Terra tentando parar a produção de plástico, limpar a poluição plástica dos oceanos e eliminar os microplásticos dos nossos corpos, a alternativa seria abraçar o plástico”, afirmou Cronenberg. “Podemos amá-lo, apreciá-lo e comê-lo. Se o plástico for usado como alimento, dá para resolver o problema da fome do mundo. É uma proposta no espírito de Jonathan Swift (1667-1745).”

Ele se refere ao escritor irlandês, consagrado com “As Viagens de Gulliver”, em que ridiculariza a sociedade de seu tempo. “Há certa realidade no que falo. Recentemente li que os cientistas estão tentando produzir um plástico comestível capaz de proporcionar nutrientes e proteína. E há bactérias no mundo que podem se alimentar de plástico e viver só dele, funcionando normalmente”, afirmou Cronenberg.

A declaração de Cronenberg tem base em estudo divulgado em dezembro do ano passado. De acordo com pesquisadores da Chalmers University of Technology, na Suécia, mais de 30 mil micróbios encontrados na terra e nos oceanos são capazes de comer e digerir até 10 tipos de plástico. “Se isso é possível no âmbito das bactérias, animais formados por uma única célula, talvez seja possível também no humano”, completou Cronenberg.

Do ponto de vista tecnológico, “Crimes of the Future” traz avanços também – e com a mesma veia cômica. Impossível não rir quando um personagem anuncia que “a cirurgia é o futuro do sexo”. Assim como ocorreu em “Crash”, em que a satisfação sexual nascia de violentos desastres de carro, aqui os amantes recorrem a procedimentos cirúrgicos. É por isso que suas camas são munidas de aparatos com lâminas.

Como o humano não sente mais dor ao cortar a pele nessa sociedade do futuro, os amantes buscam o prazer abrindo os corpos do parceiro. Vendo os órgãos é que eles entram em contato com a “beleza interior” do outro. Uma das artistas do filme tem até um equipamento para fazer tatuagem nos órgãos do parceiro, o que deixaria as suas vísceras mais interessantes para a performance de extração.

Tudo é feito para o espectador refletir sobre a evolução da espécie humana. E da maneira mais bizarra possível, por se tratar do imaginário de Cronenberg, para quem está claro que o homem não está se tornando uma criatura melhor. “Espero cometer mais alguns crimes cinematográficos antes que eu esteja acabado”, contou o diretor, rindo.