Cabe ao Estado definir parâmetros do gerenciamento de riscos para a sociedade. Numa realidade onde os dados são a nova moeda e o consumo de informações é parte dominante na nossa rotina, as Fake News se mostram cada vez mais um problema bastante grave, que nos deixa vulneráveis e suscetíveis a consequências desastrosas.

Além dos prejuízos financeiros e danos que vão muito além da reputação, os conteúdos falsos, equivocados ou manipulados com a intenção de desinformar têm ganhado espaço e influenciado as nossas crenças e opiniões. Pesquisas indicam que apesar de sermos os mais preocupados, somos as principais vítimas na disseminação de notícias falsas nas redes sociais. Sete em cada dez brasileiros acreditaram em notícia falsa sobre a Covid-19.

Essas informações inverídicas costumam ter como intuito a manipulação direta da opinião pública ou objetivos meramente financeiros, a partir de publicações que quanto maior o número de cliques, maior o retorno. Assim, se faz urgente uma regulação específica de Fake News e em nível federal, para uniformizar a matéria e garantir maior segurança aos usuários e a própria democracia do país.

Em qualquer que seja o projeto, especialmente de tecnologia, a mudança de cultura é sempre um dos principais desafios. Já está na Câmara dos Deputados a proposta que traz diretrizes para iniciarmos essas modificações que são tão fundamentais no cenário atual. O Projeto de Lei 2630/2020, que já passou pelo Senado Federal, cria a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet e estipula medidas de combate às Fake News.

Trata-se de uma legislação essencial que trata de um problema que é complexo, e para enfrentá-lo é preciso uma abordagem que busque a simplificação. Ou seja, resolver mesmo que parcialmente e em camadas evolutivas. Não vamos conseguir ter uma lei perfeita, mas precisamos ter uma regulamentação que seja eficiente e sujeita a melhorias futuras.

Apesar de a internet ser um espaço de praça pública digital, as plataformas onde esses conteúdos circulam são de empresas privadas, portanto têm donos, que são responsáveis e precisam assumir a responsabilidade por seus atos, que é a grande sustentação do direito à liberdade. Ainda mais quando a disseminação massiva de notícias falsas é uma prática que recebe aporte financeiro para atender interesses específicos.

Devemos lembrar que a busca do combate ao discurso do ódio na internet não é de hoje, remonta pelo menos desde a época do lançamento do já extinto serviço Orkut. Desde então, infelizmente o problema só se agravou e se sofisticou, com o aumento da utilização de novas ferramentas que agora contam com o apoio de robôs para aumentar o risco e dificultar o combate dessa prática pelas autoridades.

Isso é uma grande ameaça às liberdades, além de colocar em risco os próprios usuários, que não conseguem discernir nem diferenciar quando estão interagindo com um perfil humano de uma máquina, tampouco identificar facilmente o que é uma informação manipulada.

Por isso as redes sociais passam a ser obrigadas a identificar conteúdos impulsionados e publicitários, com informações da conta responsável pela ação ou do anunciante. É uma distorção completa do modelo de tecnologia e precisa ser combatida. A legislação deve prever penalidades específicas e distintas, proporcionais para quem cria e dissemina esses conteúdos, e para aqueles que compartilham as publicações.

Outro ponto importante de destacar é que o PL deve evitar entrar em questões de definição de tecnologia aplicável para não ficar obsoleto. A especificação deve focar no detalhamento sobre questões relacionadas ao mérito do conteúdo, o que já é bastante desafiador. Pela proposta, as redes sociais e serviços de mensagens podem derrubar conteúdo considerado fraudulento, com base no parecer de checadores de fatos independentes.

O fator positivo é não ter que parar tudo no Judiciário. Mas isso é visto também como muito poder às plataformas sem critérios claros para realização desta remoção, o que pode ferir a liberdade de expressão. É um ponto ainda não bem resolvido, apesar da premissa de se trazer mais a aplicação dos termos de uso e do direito de resposta.

O descumprimento de qualquer obrigação implicará em multa e suspensão das atividades. Apesar de sanções assim serem eficazes, é necessário haver abordagem criminal para quem cria as quadrilhas voltadas para causar danos sociais e coletivos, e agravamento caso a pessoa tenha ciência do que o faz ao endossar a prática, e conforme o posto que ocupa e a visibilidade que possui, ao ser influenciador ou exercer cargo público, por exemplo.

Premissas e princípios que a lei atende

A legislação de combate a Fake News está baseada em preceitos e garantias fundamentais já previstas pela Constituição Federal de 1988 e também no Marco Civil da Internet e que merecem ser reforçados e aperfeiçoados devido aos desafios que o avanço das tecnologias traz para o exercício das liberdades na Sociedade Digital.

O Brasil disse sim para a liberdade de expressão na Constituição Federal de 1988 e disse não ao anonimato e à censura. Logo, o que se quer é fazer cumprir com a Constituição Federal e para isso não precisamos levar a um amplo debate da sociedade, ele já foi realizado há mais de 30 anos atrás.

Por isso, os ajustes já realizados no PL, através de emendas e dos substitutivos acabaram por trazer conceitos e reforçar princípios já presentes em outras leis como da neutralidade, da transparência, da identificação, da transparência e da responsabilização.

Engana-se quem acredita que será o PL da fake news que vai retirar a privacidade de um usuário da internet, de mídia social ou de aplicativo de comunicação instantânea, ou que será ele que vai trazer a “tal da rastreabilidade”. Pelo contrário, em geral, as empresas privadas, que são as plataformas, já fazem tudo isso, e sem regras em leis para delimitar sua ação. Elas próprias determinam as regras que bem querem e condicionam os usuários aos seus algoritmos e decisões, algumas inclusive questionáveis.

A questão trazida pela proposta da nova legislação é justamente trazer maior transparência na atuação das plataformas e de quem as utiliza, definindo e delimitando limites e responsabilidades que não conseguiram ao final ficar bem resolvidos na redação do Marco Civil da Internet, que acabou por priorizar mais a liberdade e deixar em condição mais vulnerável a vítima que é exposta por conteúdos em ambientes digitais.

Interessante ainda que os próprios anunciantes se veem refém deste modelo, visto que nem as marcas sabem o que estão patrocinando quando sua imagem fica associada a conteúdos completamente contrários às suas regras de integridade. Até aí falta controle e transparência por parte das plataformas.

Ou seja, ao final, se busca criar também um escudo protetor para evitar que os gigantes da indústria tecnológica determinem o que pode ou não ser publicado, pois esta decisão só cabe ao Judiciário. Por isso, a iniciativa da formação de um Conselho. Logo, a nova lei irá garantir, com isso, a própria proteção das instituições democráticas e dos cidadãos brasileiros. Infelizmente, assistimos perplexos a situações onde as plataformas digitais acabam por ferir duplamente a Constituição: ou por conta de permitir o anonimato ou porque fazem censura própria. E isso precisa parar.

Infelizmente até mesmo o PL das fake news está sendo vítima de fake news, com mensagens e conteúdos sendo disseminados em grupos usando de um alarmismo absurdo e desorientando e desinformando os usuários sobre seus direitos e deveres relacionados à cidadania e ética digital. Devemos querer buscar e garantir uma internet mais segura e sustentável para as gerações futuras, mesmo que isso represente ter que repensar alguns modelos já criados.

Ao final, independente de quanto avancemos do ponto de vista tecnológico, precisamos proteger os direitos humanos e a fazer a Constituição ser cumprida. É neste momento de risco iminente aos direitos e garantias constitucionais que o Estado deve intervir, trazendo clareza e objetividade onde hoje reina incerteza e agressividade.

Devemos crer que a sociedade e cada cidadão estão devidamente representados pelo legislador eleito pelo voto livre do povo. Devemos confiar a eles a boa decisão sobre uma lei nova tão complexa, atual e importante. O debate já está sendo feito na casa política apropriada que é o Congresso, que pode restabelecer o equilíbrio saudável das relações, que foi abalado. Depois, é natural, testar a lei no palco da realidade, que é o Judiciário e evoluir com atualizações futuras.

*Patricia Peck Pinheiro é sócia e sócia e Head de Direito Digital do escritório PG Advogados. Advogada especialista em Direito Digital, doutora pela Universidade de São Paulo, com PhD em Propriedade Intelectual e Direito Internacional, pesquisadora convidada pelo Instituto Max Planck e pela Universidade de Columbia, professora convidada pela Universidade de Coimbra e pela Universidade Central do Chile. Árbitra do Conselho Arbitral do Estado de São Paulo – CAESP, Vice-Presidente Jurídica da ASEGI, Conselheira de Ética da ABED, Presidente do Instituto iStart de Ética Digital. Autora de 22 livros de Direito Digital.