Fintechs, healthtechs, logtechs, retailtechs. Esses são alguns dos termos que dominam as conversas, o interesse e o volume crescente de cheques assinados pela indústria de venture capital no mercado brasileiro.
Dispostas a mudar esse discurso, em março deste ano, a KPTL e a Cedro Capital criaram um fundo focado em um segmento ainda pouco explorado no País: as govtechs, como são chamadas as startups que atuam na esfera pública. E, agora, a dupla está ganhando um reforço de peso nessa empreitada.
Nesta quarta-feira, 29 de setembro, as duas gestoras anunciam a Multilaser como a primeira investidora estratégica do Fundo Govtech. A fabricante brasileira de eletroeletrônicos vai aportar até R$ 20 milhões no veículo, cujo plano é captar, no total, cerca de R$ 200 milhões.
“É uma mescla de propósito e negócios. Estamos unindo o útil ao agradável”, diz Alexandre Ostrowiecki, CEO da Multilaser, ao NeoFeed. “Há um mato alto gigante para ser cortado. E isso pode ajudar a destravar questões importantes para o País e para a própria Multilaser.”
Essa é a terceira incursão da Multilaser no mundo do venture capital. A empresa já investiu R$ 10 milhões no WE Ventures, fundo de incentivo ao empreendedorismo feminino em tecnologia. E é uma das cotistas do fundo da Qualcomm Ventures centrado em internet das coisas.
“A entrada da Multilaser vai muito além do investimento em si”, afirma Renato Ramalho, CEO da KPTL. “Eles decidiram patrocinar a vertical de educação, uma das minhas ‘caixas’ preferidas e um dos grandes problemas que o Brasil tem.”
A disposição de botar a mão na massa quando o tema é educação encontra eco nas próprias fileiras da Multilaser. No fim de 2018, Renato Feder, que dividia o comando da empresa com Ostrowiecki, pediu licença da operação para assumir o cargo de Secretário da Educação no Paraná.
A associação com a KPTL e a Cedro Capital também dialoga com outro projeto de Ostrowiecki e Feder, o Ranking dos Políticos. No ar desde 2012 e sem fins lucrativos, o portal monitora os parlamentares a partir de dados públicos e de parâmetros como votação em projetos e assiduidade no Congresso.
No Fundo Govtech, além de um assento no comitê que irá analisar os investimentos, a Multilaser, dona de um portfólio de mais de 5 mil produtos, distribuídos em diversas categorias, poderá exercer outros papéis.
“Desde que o cercado regulatório seja respeitado, o céu é o limite”, diz Ramalho. “Isso envolve desde a agenda comercial das startups e o uso da infraestrutura da Multilaser até a possibilidade de testar ou embarcar soluções em produtos da empresa.”
Ostrowiecki observa que muitas govtechs são focadas em serviços e softwares, o que abre espaço para a integração com equipamentos da Multilaser. No caso da educação, os tablets da companhia. Para ele, saúde e segurança são outras áreas críticas no setor público que podem fazer sentido nessas parcerias.
“Em saúde, temos oxímetros, medidores de pressão, vestíveis e recursos de internet das coisas, o que será um paradigma do setor no futuro”, afirma. “Já em segurança, há uma tendência mundial de equipar as polícias com live cams e que ainda patina no Brasil.”
Além dessas verticais, o fundo irá olhar para outros sete segmentos: habitação e urbanismo; infraestrutura e mobilidade; saneamento, meio ambiente e defesa civil; cidades inteligentes; legal e regulatório; cidadania; e gestão pública.
O foco da tese serão startups que já têm um produto e geram receita. O plano é destinar 60% dos R$ 200 milhões a investimentos iniciais. Os 40% restantes serão reservados a rodadas subsequentes nas empresas que mais se destacarem no portfólio.
“Os cheques irão variar entre R$ 1,5 milhão e R$ 2 milhões e a ideia é investir entre R$ 3 milhões e R$ 5 milhões ao longo da vida dessas companhias”, diz Ramalho. “Já temos 15 startups em estágio avançado de análise e esperamos destravar os primeiros acordos até o fim do ano.”
Ele estima fechar esse portfólio com uma base de 20 a 25 startups. E diz que o fundo já tem mais de 600 projetos mapeados. “Não temos problema nesse pipeline”, afirma Ramalho. “O que não faltam são boas oportunidades para pescar nesse aquário.”
Avanços regulatórios
O universo no horizonte do fundo é realmente amplo. Segundo uma pesquisa realizada pelo BrazilLAB, hub de inovação centrado em govtechs, e o Banco de Desenvolvimento da América Latina, o Brasil tem cerca de 1,5 mil startups com potencial para atuar junto ao setor público.
O leque de soluções também é vasto: 28% têm foco em gestão; 17%, em educação; e 11%, em saúde. Há espaço ainda para segurança (8%), mobilidade e meio ambiente (7%), habitação (4%) e saneamento (2%), entre outras áreas.
O modelo de software como serviço é adotado por 53% dessas startups, sendo que 32% delas geram receita e 11% já estão em fase de crescimento sustentável. “Há cinco anos, mal se ouvia falar das govtechs”, diz Guilherme Dominguez, CEO do BrazilLAB. “Hoje, esse ecossistema está consolidado.”
Ele destaca alguns avanços regulatórios recentes que endereçam e ajudam destravar algumas barreiras para o segmento. Entre elas, a morosidade e a burocracia na contratação em todas as esferas do setor público.
Um dos exemplos é o marco legal das startups, cujo artigo 12 abre a possibilidade de o poder público testar soluções no período de seis meses a um ano, e de contratá-las, caso se mostrem efetivas, por um prazo de dois anos. O processo elimina exigências como a comprovação de experiência anterior.
Segundo uma pesquisa do BrazilLAB e do Banco de Desenvolvimento da América Latina, o Brasil tem cerca de 1,5 mil startups com potencial para atuar junto ao setor público
Outras mudanças incluem a Lei 8.666, que rege contratos públicos. Entre elas, a ampliação do valor de dispensa de licitação, antes restrito a até R$ 12 mil e, agora, a R$ 50 mil, chegando a R$ 100 mil em alguns casos.
“Esse novo arcabouço e iniciativas como o Fundo Govtech vão impulsionar esse ecossistema”, afirma Dominguez. “Existem muitas govtechs maduras e que estão prontas para receberem investimentos de maior fôlego e darem um próximo salto.”
A dinâmica particular do setor público ajuda a entender as dificuldades das govtechs atraírem aportes para financiarem suas operações. O estudo do BrazilLAB mostra que 90% delas iniciaram suas jornadas com recursos próprios e modestos: para 38% delas, a verba ficou entre R$ 100 mil e R$ 200 mil.
Da zeladoria urbana às licitações
Cofundador e CEO da Colab, plataforma que conecta cidadãos a prefeituras, Gustavo Maia conhece bem o desafio de empreender na área. Fundada em 2013, a startup coleciona prêmios internacionais. Em contrapartida, enfrentou muitas dificuldades para sobreviver.
“Com o reconhecimento que já tivemos, se estivéssemos em outro mercado, seríamos um unicórnio”, diz Maia. Mesmo em um cenário mais restrito, a empresa conseguiu atrair investimentos. O primeiro deles, em 2014, justamente da KPTL, de R$ 500 mil.
Desde então, a Colab captou mais duas rodadas, de R$ 4 milhões e de R$ 3 milhões, junto aos fundos MDIF, Omidyar Network e EDP Ventures. Os aportes foram essenciais para que a govtech evoluísse seu modelo rumo ao conceito de superapp.
Hoje, a plataforma permite que os cidadãos interajam com as prefeituras em temas como zeladoria urbana e orçamento participativo, além de dar acesso a diversos serviços públicos digitais. Do lado do setor público, é possível gerenciar e endereçar todas as demandas geradas pela ferramenta.
“Temos 500 mil usuários e temos contratos com mais de 100 prefeituras, entre elas, Porto Alegre, Recife e Maceió”, conta Maia. “E fechamos, recentemente, com o Rio Grande do Sul, nosso primeiro contrato com um governo estadual.”
Quem também vem expandindo sua operação é o Portal de Compras Públicas. A govtech funciona como um marketplace de licitações que conecta órgãos públicos e empresas dispostas a participarem dessas concorrências. E recebeu um aporte de R$ 2,5 milhões da Cedro Capital, em fevereiro de 2020.
Hoje, a startup atende as prefeituras de 2 mil municípios, entre eles, São Paulo. “A ideia é chegar a 3 mil até o fim de 2022”, diz o CEO Leonardo Ladeira. Para esse ano, a expectativa é transacionar R$ 60 bilhões em licitações.
A receita da govtech vem das empresas interessadas em participar das concorrências. Essas companhias pagam uma mensalidade de R$ 120 para acessar às licitações disponíveis. Ao todo, são 15 mil assinantes.
Outros investimentos recentes reforçam o amadurecimento do segmento. Dois deles foram liderados pela Astella Investimentos. O primeiro, de R$ 8 milhões, veio em outubro de 2020 e envolveu a Gove, que usa dados e tecnologia na gestão de finanças municipais.
Já em fevereiro deste ano, a Astella investiu R$ 4 milhões na Aprova Digital, que digitaliza os processos de prefeituras. No mesmo mês, a KPTL fez um aporte de R$ 3 milhões na Facilit Tecnologia, de sistemas de gestão para órgãos públicos.
“Há muitas startups criando soluções mais rápidas, baratas e especializadas e, hoje, no Brasil, quase 50% do PIB de tecnologia vêm do Estado”, diz Ramalho, da KPTL. “Estamos falando de serviços de massa. E, naturalmente, esse é um mercado que qualquer fundo de venture capital vai querer se aproximar.”