O arcabouço fiscal anunciado pela equipe econômica do governo de Luiz Inácio Lula da Silva não agradou ao economista Gustavo Loyola, que por duas vezes foi presidente do Banco Central e hoje é sócio-diretor da Tendências Consultoria Integrada.
Mesmo afirmando, de forma elegante, ter “uma visão mais positiva do que negativa” do pacote, pois “se não saiu tão bom quanto parecia ser, não foi um desastre”, Loyola apontou vários problemas no conjunto de medidas: tem muitas regras, propõe um ajuste qualitativamente menos eficiente, via receitas, e apresenta um viés que vai exigir aumento de impostos.
Neste aspecto, Loyola adverte para o impacto na discussão da reforma tributária que essa busca do governo por mais receitas para obter o equilíbrio fiscal pode causar. “O arcabouço vincula despesa com a receita e, com isso, vai tirar alguns graus de liberdade da reforma tributária, mas não a inviabiliza”, afirmou Loyola ao NeoFeed.
Na entrevista a seguir, o economista também falou de inflação, juros e reforma do imposto de renda. Mostrou porque há sinais consistentes de uma trajetória de queda da inflação, defendeu a política monetária do BC diante dos ataques do governo Lula e disse acreditar que os juros começam a cair já em agosto.
Por fim, cravou que o ministro Fernando Haddad já está procurando nichos de aumento de impostos na reforma do IR, prevista para o segundo semestre. "O governo não pode correr o risco de perder receita." Acompanhe os principais trechos:
O último IPCA surpreendeu positivamente, com a menor taxa mensal de inflação em 3 anos (0,71%) e o menor índice anual em 2 anos (4,65%). Esse movimento é consistente ou apenas conjuntural?
De fato, não dá para olhar o dado de um mês e extrapolar. Mas analisando as condições por trás desses números, estamos numa trajetória mais benigna de inflação. Do lado da oferta, houve um recuo. Do lado da demanda, temos a taxa de juros – efeito da política monetária defasada, que começou a pegar mesmo só no final do ano passado e agora, no primeiro trimestre de 2023. Embora nossa economia esteja resiliente, pois não estamos em recessão, vemos uma queda da demanda. Enfim, há sinais de uma trajetória de queda da inflação.
O que atrapalha o trabalho do Banco Central na redução dos juros?
O componente inercial na inflação brasileira tende a ser alto e isso dificulta o trabalho do BC. As taxas de juros rodaram muito tempo abaixo da taxa neutra. Estamos vendo um processo de desinflação demorado, onde o BC teve que colocar a taxa real de juros muito alta para poder segurar a inflação.
As críticas do presidente Lula ao BC impactam a condução da política monetária?
Essa postura de enfrentamento dificulta o trabalho do BC. Não bastasse o cenário incerto, o BC precisa trabalhar o processo de redução do grau de contração da política monetária e mirar na questão do risco de desancoragem e de expectativas. Precisa fazer isso de maneira a não passar adiante a ideia de que o BC está aceitando uma inflação mais alta. É um problema do mundo inteiro, mas aqui é agravado pela questão política
E a questão de mudança de meta da inflação, que o Brasil não alcança há três anos?
É uma discussão cabível, mas precisa ser feita com cuidado. Temos uma meta, fixada até 2025, que é decrescente. No final de junho, o Conselho Monetário Nacional vai se reunir para definir a meta de 2026. Não estamos falando de uma queda acentuada da meta que vai adicionar muito trabalho ao Banco Central, considerando os intervalos de tolerância. O teto da banda (4,75%) está quase chegando lá, se a inflação não der repique.
A inflação alta nos Estados Unidos e Europa, um fenômeno pouco comum em economias desenvolvidas, tende a ser uma tendência ou o que está ocorrendo ainda é efeito da desorganização causada pela pandemia?
Há alguns aspectos, como ajuste de preços relativos, que tendem a se esvair ao longo do tempo. Mas a alta da inflação lá fora tem a ver com cadeias globais de produção, de ter de buscar mais de longe, embora isso teoricamente não deveria causar inflação prolongada, apenas uma transitória seguida de realimento dos preços. Aparentemente, esse processo criou uma inércia, facilitada pelas condições monetárias e fiscais dos países. A inflação vai cair em algum momento, mas a dose do remédio é que gera dúvida. Ninguém sabe onde vai parar. Mas há um risco recessivo.
Por que a inflação no Brasil não cede diante uma taxa de juros tão elevada?
A taxa de juros neutra no Brasil é de 4% – nos demais países não passa de 2%. Tem a ver com características estruturais da economia brasileira: uma elevada relação dívida/PIB e, principalmente, uma elevada dívida pública em relação ao estoque de riqueza do Brasil. Temos também riscos fiscal e regulatório, e uma economia fechada. A grosso modo, a inflação de um determinado mês é explicada pela inflação dos meses anteriores e pela expectativa de inflação futura. Quanto maior for o piso das expectativas futuras, mais a política monetária é capaz de entregar um resultado rápido e com menos custo para a sociedade.
Como se muda esse balanço?
A credibilidade do Banco Central é importante. À medida que o BC vai adquirindo credibilidade, o componente expectativa se fortalece e o olhar para o futuro começa a pesar mais do que o olhar para o passado. É um processo que leva um tempo.
"Nos últimos meses, a política fiscal no Brasil se tornou mais expansionista no momento em que a política monetária procurava ser mais contracionista. É o mesmo que puxar por um lado e empurrar por outro"
Isso explica o fato de a taxa de juros aqui no Brasil ser tão elevada e, mesmo assim, a inflação continuar resiliente?
Em parte, sim. Nos últimos meses, a política fiscal no Brasil se tornou mais expansionista no momento em que a política monetária procurava ser mais contracionista. É o mesmo que puxar por um lado e empurrar por outro. Isso pode ter tido um efeito também. A dose do remédio monetário que o BC precisa aplicar tem sido elevada também por causa disso: existe uma inconsistência entre a política fiscal e monetária, imperfeições no mercado de crédito, o prêmio de risco, indexação nos contratos, tudo isso explica.
Você acha que os juros estão muito elevados? O BC exagerou na dose?
Não acredito que tenha exagerado. O BC elevou até quando considerou necessário e explicou cada movimento do Copom de subir os juros. Tanto que parou de elevar a Selic em agosto do ano passado, e a inflação não estava caindo. Na verdade, caiu com canetada do Bolsonaro de reduzir os impostos dos combustíveis. Se o BC errou foi em permitir que os juros permanecessem baixos por muito tempo. Mas, por outro lado, o Brasil foi um dos primeiros países a apertar a política monetária após a crise da Covid.
Quando a taxa de juros começa a cair?
Aqui na Tendências estamos estimando que comecem a cair em agosto, mas isso pode ser antecipado. Vai depender do resultado de inflação e das expectativas. O mais provável é que o BC comece com quedas de 0,25 ponto percentual do que com 0,50.
O governo aposta no arcabouço fiscal para baixar os juros. Quais são os pontos que o sr. considera positivos e os que lhe causam preocupação?
O arcabouço tem a característica de não ser um indicador simples, intuitivo. É cheio de regras. Um economista (Fabio Giambiagi) o chamou de “banda diagonal endógena”, lembrando aquele regime cambial proposto anos atrás pelo economista Chico Lopes, que ninguém entendeu muito bem o que era. Talvez por isso o mercado ficou cheio de dúvidas. O que tem de positivo é o fato de que, ser for aplicado dentro dos parâmetros da proposta, ele é suficiente para evitar uma explosão do crescimento da dívida em relação ao PIB nos próximos quatro anos.
"Existem vários estudos que mostram que ajuste fiscal via receita é menos eficiente, incluindo um do economista italiano Alberto Alesina"
E o que lhe desagradou no pacote?
O fato de ser um ajuste qualitativamente pior, basicamente via receitas. Existem vários estudos que mostram que ajuste fiscal via receita é menos eficiente, incluindo um do economista italiano Alberto Alesina. Além desse defeito de cunho teórico, tem um aspecto que diz respeito ao Brasil: o país tem uma carga tributária elevada, desigualmente distribuída e estamos no meio da discussão de uma reforma tributária.
O arcabouço pode atrapalhar a aprovação da reforma tributária?
O arcabouço cria uma regra que tem um viés que exige um aumento de impostos. Tem algumas questões que podem ser enfrentadas e resultar num aumento de receita, como a reversão de desonerações – e aí o ministro Fernando Haddad pode encontrar os mais de R$ 100 bilhões que está procurando.
Mas o mercado reagiu bem ao pacote...
A recepção do mercado foi no sentido de que tiraram o bode da sala. Não vai ter descontrole fiscal ou pelo menos a gente precisa dar o benefício da dúvida para o ministro Haddad e sua equipe. Fizeram um arcabouço que, embora tenha seus problemas, é um ponto de partida. O arcabouço não saiu tão bom quanto parecia ser, mas não foi um desastre. Ficou dentro daquilo que é considerado factível. Tenho uma visão mais positiva do que negativa porque poderia vir algo bem mais frouxo.
"Minha maior crítica ao pacote fiscal é que ele parece preparar o terreno para o aumento dos impostos"
O Congresso pode melhorá-lo?
Sim, poderia dar uma apertada no arcabouço, mas não sei se vai fazer isso. Minha maior crítica ao pacote fiscal é que ele parece preparar o terreno para o aumento dos impostos. O arcabouço vincula despesa com a receita. Com isso, vai tirar alguns graus de liberdade da reforma tributária, mas não a inviabiliza. Pelo que está desenhada, no caso dos impostos de consumo, a reforma tributária entra em vigor de forma gradual.
Qual a melhor proposta de reforma tributária, na sua visão?
A que viabilize o IVA federal, com alíquotas homogêneas entre estados, uma boa distribuição dos impostos nas três esferas e que seja harmônica, com objetivo de reduzir os custos de observância dos contribuintes e facilitar a desoneração das exportações. A ideia da reforma de passar a tributação de origem para destino é muito boa.
E os principais gargalos previstos para aprová-la?
Dado o sistema atual de tributação brasileiro, há uma série de complexidades: como fica a Zona Franca de Manaus, os setores isentos ou com regimes especiais de tributação e por aí vai. O governo terá problemas para aprová-la, menos no plano ideológico e mais no plano regional. Principalmente no contexto de muita fragmentação política e partidária. A pauta legislativa do Lula não será fácil, se comparada a 2003.
E a reforma do imposto de renda, prevista para o segundo semestre?
Nessa reforma, que foi iniciada num projeto do agora ex-ministro Paulo Guedes aprovado pela Câmara, o governo não pode correr o risco de perder receita. Já tinha uma promessa de corrigir a tabela do IR, então isso precisa ser compensado de alguma maneira. O ministro Haddad já falou em tributar fundo exclusivo, etc, ou seja, já está procurando nichos de aumento de impostos.