Ninguém sabe dizer o que é uma galinha feliz. Nem se ela veio antes ou depois do ovo. A única certeza é que ela era criada livre, leve e solta, sem nenhum antibiótico ou aditivo químico, e que, seu primeiro ovo, ah, esse era definitivamente orgânico. Verdade seja dita, voltar a essa idílica realidade, além da responsabilidade ambiental e da solidariedade humana, demanda investimentos pesados e a luta para incrementar uma fatia de apenas 0,3% do mercado.
Vale a pena? A Raiar empenhou R$ 200 milhões na crença de que sim. Engatinhando, o projeto de Marcus Menoita (ex-CEO da NovaAgri, do Grupo Toyota), Luis Barbieri (ex-Louis Dreyfus Company) e Leandro Almeida (também egresso da NovaAgri) está prestes a decolar: de atuais 60 mil galinhas poedeiras, chegará a 160 mil – ou pouco mais de 150 mil ovos por dia – ao final deste ano.
Antes precavido e sustentável do que vertiginoso, o crescimento reflete uma estratégia em desenvolvimento desde 2018. Parte dela significa prover o bem-estar de suas aves por meio da “tropicalização” de práticas europeias. Um exemplo? A primeira Jump Start da América do Sul.
Misto de “playground e academia”, a máquina holandesa estimula os pintinhos durante suas primeiras 16 semanas de vida a aprenderem a empoleirar. Num sistema de patamares, eles começam com acesso direto à água e à ração. À medida que crescem, a diferença entre os níveis de alimentação e bebida aumenta, estimulando-os a saltarem.
A parte majoritária, contudo, é o aporte na maior fábrica de ração orgânica do país. Afinal, para os executivos da Raiar, não é só você: a galinha também é o que ela come. Vai daí que, além de assegurar água fresca e de qualidade à vontade; sol e poleiro; “cama” seca e fofa; temperatura adequada; ausência de ferimentos, dor e desconfortos; ambiente protegido e área para se cacarejar em paz, eles asseguram a cadeia de fornecimento do que é servido no “prato limpo” de suas penosas.
Em outras palavras, nos 170 hectares em Avaré, a 260 km da capital paulista, a empresa garante as cinco liberdades fundamentais (alimentar, ambiental, sanitária, comportamental e psicológica) preconizadas pelo selo Certified Humane (principal organização internacional sem fins lucrativos de certificação pela melhoria da vida animal na produção de alimento). De quebra, debruça-se sobre outras fazendas para fomentar a conversão de agricultores familiares tradicionais em orgânicos.
“Não existe ovo orgânico em larga escala porque não há grãos adequados, por isso a necessidade de verticalizar o negócio. Já apoiamos a conversão de 60 produtores, que receberam capacitação técnica para escalar a produção de grãos e que ficaram ao menos 12 meses sem usar nenhum insumo proibido na agricultura orgânica”, conta Barbieri.
Insumos sem agrotóxicos, nem transgênicos, não só vão alimentar suas “ruivas” da raça lohmann brown, como servirão para alimentar aves de corte, incluindo patos e perus, e mesmo vacas: “A produtividade dos animais é afetada por qualquer fator anti-nutricional na ração. Esse vai ser nosso foco para a venda a pequenos produtores, que poderão ter mais rentabilidade, mais qualidade e conquistarem mais mercados”, revela Menoita.
Para a fábrica, prevista para o segundo semestre, milho, soja, sorgo e trigo virão de São Paulo, Paraná, Mato Grosso do Sul, Minas e Goiás, uma comprovação de quão pulverizada é a produção dessa parcela de 0,02% dos cereais nacionais.
Pulverização, aliás, é o comum no reino do bem-estar animal, como estampam as etiquetas de “ovos livres”, “sem hormônios”, “caipiras”, “orgânicos” ou “felizes” nas embalagens dos supermercados.
Trocando em miúdos, livre de gaiolas ou cage-free é um termo do USDA (Departamento de Agricultura dos Estados Unidos) para ovos de aves que têm acesso ilimitado a comida e água fresca, mas não têm acesso ao ar livre. Ou seja, ao invés de se restringir a uma jaula do tamanho de uma folha de papel sulfite, podem circular por um galpão com no máximo mais oito “colegas” por metro quadrado.
Já free-range, outra nomenclatura do USDA, significa que os ovos vêm de poedeiras com alguma circulação ao ar livre, enquanto a caipira determina área externa de no mínimo 0,5 metros quadrados por ave, de manhã ao final do dia, desde que as condições climáticas permitam.
A grande diferença para o sistema orgânico é a alimentação, a restrição a medicamentos e, normalmente, um tiquinho mais de espaço. Ainda que seja o formato mais saudável, ele divide os maiores players no Brasil.
Luiz Carlos Demattê Filho, CEO da Korin Alimentos, pioneira na América Latina em produtos sem antibióticos e com bem-estar animal é daqueles que acha que nem isso basta. Tanto assim que acaba de dar mais um passo com o lançamento do selo NAAU, isso é, Nenhum Antibiótico e Nenhum Anticoccidiano Utilizado.
“Antibiótico é só uma classe de moléculas usadas no tratamento dos animais. Os anticoccidianos são substâncias químicas para o controle de protozoários que afetam as aves obrigadas a consumi-los e também a microbiota do solo e dos sistemas aquáticos, como têm evidenciado os trabalhos científicos”, explica Demattê Filho, que, além de veterinário pós-graduado em nutrição animal e ecologia aplicada, é pós-doutorando em Sustentabilidade.
“Valorizar e estimular o sistema imunológico naturalmente, sem quimioterápicos faz parte da busca por um sistema de produção em harmonia com a natureza”, complementa ele. O que isso reflete no ovo fica expresso na nova linha Boa Pedida, que pode “conter mais nutracêuticos, como os antioxidantes naturais, e, no paladar, ser bem diferente de um ovo convencional”.
Falando nele, a indústria tradicional não está ameaçada, visto que o consumo per capita de ovos no Brasil aumentou 70% na última década sem alavancar os tais 0,3% dos orgânicos. Contudo, à medida que mais pessoas descobrem os benefícios desses alimentos para a saúde (humana ou do meio ambiente), o crescimento é inevitável, como mostram os 7% nos Estados Unidos e os quase 20% na Europa.
“É um caminho sem volta, mas até chegar à ração orgânica da galinha para o ovo também ser orgânico, é preciso democratizar muita coisa. A primeira é acabar com as gaiolas e estabelecer padrões mais altos de segurança alimentar”, acredita Leandro Pinto, presidente do Grupo Mantiqueira, o maior produtor do País com 2,3 bilhões de ovos por ano.
Apesar de 35 anos de experiência, há apenas cinco o empresário mineiro embrenhou-se por esse caminho e há, pouco mais de um ano, tomou a decisão de não abrir mais nenhuma granja no sistema convencional: “Investimos mais de R$ 100 milhões no compromisso com o bem-estar animal e, em um ano, chegamos a um milhão de galinhas livres de gaiolas com selo Certified Humane. Até o final de 2025, serão pelo menos 2,5 milhões”.
Pinto ainda tem 12 milhões de galinhas em gaiolas, mas “emociona-se” com as aves que “ciscam, que são curiosas, que voam para o seu colo como se fosse um cachorro de casa” nas novas plantas em Cabrália Paulista e Lorena, no interior de São Paulo.
“O ovo é a proteína mais democrática da humanidade e tem tanto a melhorar ainda, que é mais importante falar de ‘free range’ (cage free com horas ao ar livre), do que destacar as poedeiras orgânicas que temos no Paraná”, reforça o fundador da Mantiqueira, que com esse sistema tem custos quase 20% mais elevados, compensados por um valor de 30% a 35% mais alto nos pontos de venda.
Desde sempre orgânicas, Raiar e Korin só podem engrossar o coro no que se refere a equipamentos mais caros, à maior necessidade de mão de obra, a valor agregado e, sim, a preços que não podem ser chamados de convidativos. A saber: o free range da Mantiqueira beira R$ 1,10 e seu orgânico, R$ 1,80. O da Korin chega a R$ 1,80 e o da novata começa em R$ 1,99 em seu e-commerce.