Em 1997, quando deixou, no auge da carreira, o posto mais cobiçado da televisão brasileira – o de diretor-geral da TV Globo – muitos imaginaram que José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, então com 62 anos, se limitaria apenas a dar vazão ao bon vivant que sempre morou dentro de si, mas que, de certa forma, consumido pela responsabilidade de comandar uma gigante da tevê brasileira, nunca conseguira desabrochar.

Porém, quem o conhece na intimidade, sabe que Boni não abraçaria a aposentadoria nem em troca de uma caixa-forte lotada de Romanée-Conti. O trabalho seguirá sendo sempre a sua grande cachaça. Uma prova disso é que, aos 85 anos, ele continua em plena atividade e sonhando alto.

Mesmo limitado a comandar uma afiliada da Globo, a TV Vanguarda, Boni consegue se diferenciar dos concorrentes valendo-se apenas de boas e visionárias ideias. Nas suas mãos desde 2003, a Vanguarda, que atinge cobertura de 46 municípios na região do Vale do Paraíba, Mantiqueira e Litoral Norte de São Paulo, deixou de ser uma modesta emissora do interior paulista para virar uma potência regional.

Esse pulo se deu graças a inovações na programação e na parte técnica (ela foi a primeira emissora do país a utilizar câmeras Sony de alta-definição, com gravação em cartão de memória). Nada, porém, causou mais impacto do que a criação do aplicativo Vanguarda Repórter, que permite que qualquer pessoa, após assinar um termo de responsabilidade, vire um colaborador da emissora, enviando textos, fotos e vídeos, muitos deles aproveitados nos telejornais da emissora.

A ideia, nascida em 2015, ganhou corpo. Boni, que entrou para a história por dirigir, com mãos de ferro, estrelas da televisão brasileira, agora comanda uma rede formada por nada menos do que 250 mil colaboradores, que abastecem, por meio de contrapartidas, a programação jornalística da Vanguarda – são cerca de dez matérias inéditas por dia.

Agora, ele se prepara para criar uma espécie de moeda digital para ser usada por esses milhares de colaboradores. A ideia é incentivar cada vez mais a produção de vídeos. Quanto mais conteúdo a TV Vanguarda receber, mais moedas serão acumuladas pelos colaboradores que poderão trocá-las por produtos.

A pandemia não lhe deixou menos altivo. Nem o distanciou de sua porção hedonista (ele contratou uma chef de cozinha, que passou a morar na sua casa no Rio de Janeiro). Boni continua sendo um frenético consumidor de notícias – e um crítico mordaz e implacável dos rumos da televisão, como se nota nessa entrevista exclusiva concedida ao NeoFeed. Acompanhe:

É possível fazer coisas relevantes, ousadas, numa afiliada da Globo? Até que ponto os seus devaneios ficam limitados?
É claro que o alcance é menor, que é diferente de ser diretor-geral de uma gigante como a Rede Globo. Mas eu tenho conseguido dar vazão a muitas ideias interessantes. Somos, por exemplo, a única emissora do país a contar com 250 mil colaboradores, voluntários cadastrados, que enviam fotos, vídeos, informações de tudo que acontece na região do Vale do Paraíba, da Serra da Mantiqueira, do Litoral Norte. Não há nada parecido no Brasil. Foi uma ideia minha e que tem dado muito certo.

Como funciona esse projeto?
Ele começou a nascer em março de 2015. Criamos um aplicativo, o Vanguarda Repórter, que permitia ao usuário, por meio de um celular, enviar fotos, textos e vídeos de algum acontecimento relevante na sua rua, bairro ou cidade. Para se cadastrar, esse colaborador tem que assinar um termo, se comprometendo a não veicular fake news e a ceder os direitos de imagem. Deu muito certo. Hoje, com custos muito pequenos, conseguimos, graças a esse banco de voluntários, a veicular no mínimo dez matérias inéditas por dia. Criamos também contrapartidas interessantes para os nossos colaboradores, que vão desde o sorteio de smartphones e aparelhos de televisão até a chance de estagiar na própria TV Vanguarda ou em outras emissoras.

Então, o Boni, que antes comandava estrelas da televisão brasileira, agora é o “patrão” de 250 mil colaboradores?
Tem sido muito prazeroso e desafiador. Queremos ampliar o leque do aplicativo, criando novas funções, como participações ao vivo e formação de plateias virtuais. O nosso sistema de prêmios também tem sido ampliado. Todos que têm material exibido nos nossos jornais ganham pontuação. Ao término de um período, em média seis meses, quem tiver mais pontos leva o prêmio. Estamos pensando também em criar uma moeda fictícia.

“Somos, por exemplo, a única emissora do país a contar com 250 mil colaboradores, voluntários cadastrados, que enviam fotos, vídeos, informações de tudo que acontece”

Uma moeda?
Por exemplo, o colaborador que enviar uma foto, ganha uma moeda. Se enviar vídeo, duas moedas. Se o vídeo for usado num dos nossos telejornais, 10 moedas. Com determinado x de moeda, será possível trocar por brinquedos, celulares, livros, eletrodomésticos e estagiar na TV Vanguarda, desde que seja estudante de jornalismo.

O senhor, aliás, é um ávido consumidor de telejornais. Como viu a chegada da CNN Brasil, uma forte concorrente da GloboNews?
A CNN Brasil está fazendo um bom trabalho. Eles conseguiram ser eficientes e rápidos num curto espaço de tempo. Mas é preciso melhorar muita coisa. O jornalismo não pode ficar em cima apenas de quatro ou cinco fatos. É preciso ter uma pauta mais extensa, oferecendo mais conteúdo e sobretudo mais opinião, com mais espaço para o contraditório. Os comentaristas dos telejornais brasileiros não divergem. Essa crítica vale principalmente para a GloboNews.

Por quê?
Vou dar um exemplo. Outro dia, durante a cobertura da pandemia, dois comentaristas da GloboNews, o Gerson Camarotti e o Demétrio Magnoli, discutiram ao vivo. É algo tão raro de se acontecer, que a âncora tomou um susto. O que é uma exceção tinha que virar regra. A discordância enriquece o debate. Se todos pensam da mesma forma, a tendência é ficar tudo muito morno e chato.

“A discordância enriquece o debate. Se todos pensam da mesma forma, a tendência é ficar tudo muito morno e chato”

O senhor também é um crítico da atual grade de programação da Rede Globo, que o senhor ajudou a criar e que, na sua opinião, ficou obsoleta. Por que a Globo resiste tanto em mudar?
Porque é difícil mudar algo que deu certo durante muitos anos. Mas é preciso. Praticamente tudo aquilo que eu deixei lá, há 22 anos, continua rigorosamente igual. O público é ávido por novidades. Se a Globo não sair da mesmice, vai continuar o processo de perda de audiência. É preciso coragem. E eles têm quadros que podem liderar essa transformação.

A ampla e cada vez maior concorrência das plataformas de streaming também minou a audiência das emissoras abertas. O senhor vê séries?
Eu comecei a ver com muito entusiasmo. Depois, ficou tudo a mesma coisa, tudo muito convencional. Eu vejo o primeiro episódio, o segundo e já pulo para o final. Raramente uma me prende até o fim. É tudo muito entediante.

“Se a Globo não sair da mesmice, vai continuar o processo de perda de audiência. É preciso coragem”

Quando completou 85 anos, o senhor declarou, em entrevista, que continuava sendo um “maluco sonhador”. E que esperava continuar “delirando” por muito tempo, fazendo coisas relevantes, ousadas. Até que ponto a pandemia atrapalhou os seus planos?
Não mudou muito minha rotina. A diferença é que não posso sair de casa. Mas daqui consigo acompanhar tudo que acontece na TV Vanguarda e manter antigos prazeres. Contratei, por exemplo, uma chef de cozinha, a Priscila Pinto, que passou a morar aqui em casa. Cozinhamos juntos, criamos alguns pratos. Estou pensando em lançar um livro de receitas. Tenho catalogado 120 receitas, formas simples e objetivas de se preparar bons pratos em casa. Para você ver como ando ocupado. Não posso reclamar.

Mas não sente falta do hábito de frequentar restaurantes?
Muito antes da pandemia, eu já tinha diminuído o ritmo. A maioria dos restaurantes se tornou insuportavelmente impessoal. Aumentaram de tamanho e foram obrigados, por conta disso, a diminuir a qualidade da comida e do atendimento. Quando alguém insistia para que eu frequentasse determinado restaurante da moda, eu repetia a frase que virou um dos meus aforismos preferidos: “Não é importante conhecer restaurantes. É importante conhecer restaurantes que conheçam você”.

O senhor também declarou que não compraria mais vinhos, por conta dos preços e que sua adega tinha condições de abastecê-lo até o fim da vida....
Esqueça isso. A pandemia fez ruir essa projeção (risos). Se a pandemia durar mais um ano, acaba o meu estoque, que foi reduzido drasticamente.

Para terminar, qual é a dica que você daria para quem enfrentou grandes dificuldades durante a pandemia e precisa se reinventar, saindo praticamente do zero?
Eu penso sempre no meu avô Isaías, um grande sujeito, um homem inquieto, visionário, que sempre achava soluções criativas. Em 1945, a guerra tinha acabado e o mundo todo estava quebrado. O que o meu avô inventou? Um sistema de delivery de vinhos, em Santos. O cara ligava e ele entregava o vinho, de bicicleta. Isso em pleno 1945. Se bem que acho que ele não serve de exemplo para a sua pergunta, porque, meses depois, ele quebrou (risos). Mas que a ideia era genial, era.

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