Demorou, mas Mai Jia (pseudônimo de Jiang Benhu), um dos autores mais influentes, lidos e premiados da China, ganhou tradução no Brasil. Com atraso de vinte anos, seu romance mais famoso, de 2002, traduzido em 33 idiomas, O criptógrafo, chega às livrarias brasileiras este mês pela Companhia das Letras.

Transposta diretamente do idioma original, a obra é um dos livros mais vendidos na China nessas duas décadas. E consagrou seu autor com os mais importantes prêmios literários de seu país. Três dos cinco romances que publicou foram transformados em séries televisivas e filmes nos últimos anos.

Jia costuma ser citado como criador de um gênero que combina espionagem, quebra de códigos, política, ficção histórica e metaficção – várias passagens trazem supostas transcrições “reais” de depoimentos de personagens colhidos por ele, como se fosse uma reportagem biográfica.

A primeira pergunta que pode vir ao leitor é: em um país onde a censura controla com rigor a produção intelectual, como um tema tão espinhoso como espionagem foi permitido? Não há registro de que O criptógrafo tenha sido modificado ou mutilado. Além da trama ocorrer antes da revolução socialista de Mao, de 1949, outra aparente explicação fica clara com o correr da leitura. O autor é um ex-agente de espionagem ou ex-oficial da inteligência totalmente alinhado pelo regime dito comunista que governa a China.

Cultura milenar

Não espere uma aventura de tirar o fôlego como Ian Fleming fazia com seu agente inglês 007 desde o primeiro parágrafo de cada aventura. Pelo menos na parte inicial. Nos sete primeiros capítulos, ele faz um extenso recordatório sobre oito gerações de uma família, os Lillies, marcada por tragédias e anomalias genéticas e misticismo, até chegar a um descendente bastardo que se torna o protagonista da trama, com inteligência fora do comum para cálculos matemáticos e interpretação de sonhos.

Seu nome era “Coisinha”, até ser rebatizado de Rong Jinzhen, depois de adotado por parentes distantes que estudam matemática em uma universidade chinesa sem nome e logo é reconhecido por suas proezas em cálculos. Levado para a Universidade, Rong se tornou protegido de um professor-visitante polonês, impressionado com sua mente brilhante que o incentivou a estudar inteligência artificial.

Depois que o mestre deixou a China, o jovem foi recrutado por um agente do governo à procura dos alunos mais inteligentes para a Unidade 701, agência governamental dedicada à criptografia. Tudo aconteceu durante a ocupação japonesa da China. O herói se infiltrou como espião nas fileiras nipónicas. Logo no começo, quebrou o código da cifra roxa e ficou obcecado em fazer o mesmo com a cifra negra.

Além desse trabalho, ele se envolveu em operações de contraespionagem e mensagens truncadas que empolgam os corredores das agências de informação. Numa derradeira tentativa para desmascarar o espião chinês, os japoneses passaram a enviar mensagens falsas. E veio o suspense que era saber se Rong seria enganado. Depois de se tornar o maior e mais celebrado criptógrafo da China, ele cometeu um erro que deu início à sua derrocada, em uma sucessão de fatos marcados por mistério e loucura.

Força literária

O criptógrafo se destaca por sua narrativa inesquecível e emocionante sobre brilhantismo, insanidade e fragilidade humanas, como afirmaram alguns críticos. É uma mistura também de saga histórica e quebra-cabeças matemáticos que, de alguma forma, se unem em uma narrativa de força literária que impressiona. Desde o início, há uma sucessão de situações absurdas e quase sempre cômicas de personagens singulares que dão prazer à leitura.

Em 2017, quando o livro saiu no Reino Unido, o The Daily Telegraph o descreveu como um dos vinte melhores romances de espionagem de todos os tempos. O The New York Times o pontuou como "um virador de páginas", daqueles que o leitor não consegue largar, com "um enredo emocionante, aura sobrenatural e detalhes extravagantes". O The Guardian chamou o livro de "hábil em sua exploração do mundo da matemática e da criptografia". Para a The Economist, tratava-se de "um grande romance chinês". Críticas semelhantes saíram no Financial Times (“Totalmente original”) e no South China Morning Post.

De fato, o romance merece elogios principalmente por seus personagens anti-heróis de uma época de fragilidades e hábitos conservadores implacáveis. Jia escreve com humor e leveza, em um estilo influenciado pela literatura de entretenimento ocidental, mas sobre um país que remonta aos primórdios das primeiras civilizações, com seus hábitos um tempo tradicionalista e opressor, como na parte da educação das mulheres. “Nasceu com uma cabeça redonda e grande e o que tinha ali dentro definitivamente não era um tutano comum, mas um intelecto fenomenal, raras vezes visto em uma mulher”, escreve o autor.

SERVIÇO:

O criptógrafo, Mai Jia
Tradução: Amilton Reis e Sun Lidong
Número de páginas: 336
Preço: R$ 99,90 / e-book: 44,9
Editora: Companhia das Letras