Tema de estudo obrigatório no currículo escolar e diversas vezes recontado em filmes e até telenovelas, o episódio que levou à Independência entre Brasil e Portugal é um daqueles fatos históricos que todo mundo acredita saber como ocorreu.

Na versão ensinada, o então príncipe Dom Pedro de Orléans e Bragança decidiu decretar a separação entre os dois países de forma pacífica, durante uma viagem a São Paulo, no dia 7 de setembro de 1822.

Às vésperas das comemorações pelos 200 anos do evento, porém, novas evidências historiográficas demonstram que o processo não foi tão pacato – e que mesmo a data em que celebramos acabou sendo escolhida por razões políticas.

É o que demonstra a leitura de “Ideias em confronto: embates pelo poder na Independência do Brasil, 1808-1825” (Editora Todavia), livro que sugere novas perspectivas para entendermos a cisão com Portugal.

Longe de viver acomodada, por exemplo, a população brasileira no início do século XIX sabia questionar a soberania real e, se necessário, pegava em armas para defender seus princípios.

“Quis apresentar uma enorme produção de conhecimento sobre o período elaborada a partir dos programas de pós-graduação em História das universidades públicas brasileiras, que tem dificuldade de chegar a um público maior”, explica a autora Cecilia Helena de Salles Oliveira, historiadora, professora e ex-diretora do Museu Paulista da USP.

Em entrevista ao NeoFeed, ela falou sobre a complexidade da história e como podemos aprender com passado.

No livro, você fala sobre contribuições historiográficas que, há mais de 40 anos, “vêm interrogando e modificando os pressupostos com os quais aprendemos a conhecer” o período da Independência no Brasil. É correto afirmar que a versão das escolas é mais simplificada ou equivocada?
As duas coisas. Existe uma cultura de História que vem desde o século XIX com uma força muito grande não só por causa da repetição, mas por estar espelhada na obra de inúmeros historiadores. Essa cultura propõe um enredo que ninguém discute. E eu apresento uma produção que põe em xeque o enredo. É com ele revigorado, reconstituído, que precisamos olhar a nossa formação e entender que a violência é parte da nossa história, da sociedade.

"Maria Quitéria", de Domenico Failutti: obra de 1922 em comemoração ao centenário da Independência ( acervo Museu Paulista da USP)

Que tipos de violência?
As discriminações, as relações de dominação social e, principalmente, o modo como as relações econômicas foram sendo constituídas ao longo da segunda metade do século XVIII e do século XIX e fizeram com que o país se tornasse uma potência capitalista no sentido mais raso do termo e, ao mesmo tempo, uma sociedade que não se identifica com a violência, o racismo, a dominação – quando é o inverso que acontece. Se tem um aspecto da Independência que nos persegue até hoje é a conjunção entre interesses privados e interesses públicos.

Quais os efeitos dessa conjunção?
Encobre as mais dramáticas violências que poderiam acontecer com os povos originários, os escravizados, os africanos livres, outras populações pobres que se tornaram subalternas não porque quisessem ou deixassem de lutar, mas porque foram derrotadas em inúmeras ocasiões. Temos que nos voltar para o passado procurando as possibilidades históricas que não deram certo, porque talvez elas nos ajudem a iluminar o que estamos passando, nossa própria trajetória. Nesse sentido, somos equiparáveis aos Estados Unidos, às demais nações americanas que se tornaram independentes na mesma ocasião, às nações que se forjaram na África ao longo dos séculos XIX e XX.

"Temos que nos voltar para o passado procurando as possibilidades históricas que não deram certo, porque talvez elas nos ajudem a iluminar o que estamos passando, nossa própria trajetória"

Foram nações que acabaram repetindo esse enredo?
Exatamente, porque a matriz desses processos de configuração da nação está nas relações de dominação econômica e social de alguns grupos sobre outros, de alguns grupos que conseguem se assenhorear da estrutura do Estado e elaborá-la para beneficiá-los. O livro deixa muito claro que a sociedade era complicadíssima, com muitas formas de vida, riqueza e relacionamentos.

Já existia essa desigualdade que se perpetua até hoje?
Nossa sociedade nasce desigual e se projeta desigualmente, não só através da continuidade da escravidão, mas principalmente no modo como o qual os libertos foram sendo incorporados às relações de trabalho e de dominação, a uma hierarquia social e cultural muito forte. Procuro mostrar que havia projetos políticos que iam em outra direção, mas foram derrotados no momento da Independência e ao longo do século XIX.

O Hino da Independência tem versos que dizem “Ressoavam sombras tristes / Da cruel guerra civil”. A que a senhora atribui a decisão de suprimir da “história oficial” episódios de conflitos armados antes e depois da Independência?
Vemos na universidade e em várias obras, mas não no âmbito da sociedade. Penso que inúmeros grupos políticos e de poder não têm interesse em apontar alguns aspectos, como a força interna que pode levar a sociedade a se autogerir e a se tornar independente dessa aparente subordinação relativa a determinados políticos ou discursos. Na época da Independência, assim como ficaram encobertos os conflitos e a relação entre público e privado, ficou encoberta a possibilidade da sociedade se rebelar. Mas nossa historiografia, de forma geral, passa por cima disso. É como se a sociedade do começo do século XIX fosse amorfa, não reagisse e não tivesse uma movimentação política e cultural absolutamente intensa.

"Na época da Independência, assim como ficaram encobertos os conflitos e a relação entre público e privado, ficou encoberta a possibilidade da sociedade se rebelar"

Temos a sensação de uma sociedade conformada.
Mas isso não corresponde ao que as pesquisas vêm mostrando. Hoje se sabe que a participação de homens e mulheres indígenas, quilombolas e escravizados nas guerras de Independência, particularmente no Norte e no Nordeste, se fez por compreenderem que corriam risco, tanto para a atividade que realizavam quanto para a preservação dos espaços que ocupavam. Temos que perceber esse movimento. Ao longo da primeira metade do século XIX, a configuração do Império revelou um processo exitoso, vitorioso, de organização da grande lavoura exportadora – e isso se fez em detrimento dos pequenos e médios produtores, dos quilombolas, das aldeias indígenas.

E houve reação?
Sim, eles não ficaram quietos. Rebelaram-se durante as eleições, escolhendo aqueles que acreditavam ser seus representantes, e atuaram em inúmeras formas de manifestação, seja por meio da imprensa ou de conflitos. A despeito da historiografia brasileira ser de uma riqueza imensa, com obras muito bem escritas e fundamentadas, isso não vem à tona por questões políticas. Essa cultura de História que atravessa e intermedia a compreensão de nossa situação, de nossas relações internacionais, coloca um véu que impede nossa problematização e o questionamento de nossa própria formação. O livro oferece ao leitor a possibilidade de fazer outra interpretação, de questionar se não está na hora de perguntar mais sobre nossa sociedade.

O 7 de Setembro é considerado uma data-símbolo para a democracia, embora Dom Pedro I fosse considerado um tirano por muita gente. A data pode ter mesmo essa conotação?
Pode, porque o sentido da data foi sendo alterado ao longo do tempo. No começo, quando foi escolhida, estava atrelada à figura do imperador e da monarquia, mas ao longo do século XIX isso foi sendo mudado. Os republicanos, que organizaram um novo regime, se apropriaram da data e deram a ela um outro sentido, para dizer que a monarquia não tinha cumprido efetivamente suas promessas de liberdade, igualdade e uma sociedade mais justa. Ao longo do século XX, o 7 de Setembro foi adquirindo inúmeros significados. Então pode ser feita uma associação entre a data e a liberdade política ou a democracia – mas depende do momento e de quem fala. Como data nacional, o 7 de Setembro canaliza muitas demandas e muitas vozes. Essa é a beleza do dia.

"Ao longo do século XX, o 7 de Setembro foi adquirindo inúmeros significados. Então pode ser feita uma associação entre a data e a liberdade política ou a democracia – mas depende do momento e de quem fala"

Os 200 anos do 7 de Setembro serão marcados também pela reinauguração do Museu Paulista, que tem o quadro Independência ou Morte, de Pedro Américo, entre suas principais obras. Você escolheria outro objeto do acervo do museu para marcar a data?
Sim, duas telas feitas por Domenico Failutti em 1922, para marcar o centenário da Independência, que ficam frente a frente, no Salão Nobre do museu. Uma mostra Dona Leopoldina em atitude maternal. Outra representa Maria Quitéria, de arma na mão. Elas fazem um contraponto ao quadro de Pedro Américo e podem sugerir para o público visitante uma reflexão sobre o que nós podemos compreender sobre a participação feminina na época da Independência.

Serviço:
"Ideias em confronto: embates pelo poder na Independência do Brasil 1808-1825"
Cecilia Helena de Salles Oliveira
Todavia
272 páginas
Impresso: R$ 74,90
E-book: R$ 48,90