A Inteligência Artificial (IA) está no cerne das atenções. Estamos ainda no início de sua curva de evolução e talvez IA esteja hoje como estávamos com a internet 20 anos atrás. Mas, mesmo incipiente, já mostra que tem potencial de mudar nossa sociedade. Estamos vendo os estágios iniciais desta transformação.

O interessante é estamos vendo os empregos de escritórios, antes considerados fora da zona de risco da automação, serem afetados diretamente. Tecnologias como RPA (Robot Processing Automation) automatizam as tarefas rotineiras que fazemos no nosso dia a dia, como copiar arquivos, enviar e-mails, alterar agendas, solicitar aprovação para alguma coisa e assim por diante.

Tudo isso pode ser feito automaticamente e com algoritmos de machine learning. Os sistemas de IA aprendem continuamente, evoluem e, com isso, podem fazer de forma mais eficiente que as pessoas. Isto significa que toda uma atividade profissional vai acabar? Bem, as que puderem ser inteiramente automatizadas, acabarão sim, como aconteceu com os ascensoristas.

O fato é que a imensa maioria das nossas atividades profissionais tem parcela de tarefas automatizáveis e, portanto, substituíveis por robôs de software. Estima-se que em aproximadamente 60% das ocupações, pelo menos 30% das atividades constituintes são tecnicamente automatizáveis.

Automatizando estas tarefas, reduz-se o custo operacional e desloca-se as pessoas envolvidas para efetuar atividades de maior valor agregado. Mas, para entendermos o potencial e as limitações da IA, precisamos entender o que é IA.

A IA é uma constelação de tecnologias e requer talentos, dados, hardware, algoritmos, aplicações e integração. Talentos constituem o componente mais valioso, pois é a partir dele que os outros componentes são criados. Dados são críticos para o treinamento de algoritmos, principalmente os de aprendizado de máquina e deep learning.

Hardware, seja via cloud ou dentro de casa, é essencial para o processamento dos algoritmos. Estes são as operações matemáticas que dizem ao sistema como navegar no oceano de dados para fornecer as repostas às questões especificas que são formuladas. As aplicações tornam estas respostas úteis para determinadas tarefas.

E integração, que permite que além do “stack” de tecnologias de IA operar de forma fluída, faça com que as aplicações de IA interajam com outras e com os processos de negócio, de modo a resolver problemas reais.

Tudo isso precisa de um ecossistema, que faça a máquina girar. Como ecossistema entendo que é necessário todo um arcabouço de formação de talentos, investimentos, regulações, proteção à propriedade intelectual e políticas de incentivo. Está claro que para aproveitarmos o potencial da IA precisamos de pessoal capacitado. E hoje temos um imenso desafio: escassez de talentos.

A demanda por talentos em IA é crescente e existe um abismo entre demanda e oferta, com diversas funções disponíveis para cada profissional de IA verdadeiramente capacitado. A IA exige competências avançadas em matemática, estatística e programação.

A demanda por talentos em IA é crescente e existe um abismo entre demanda e oferta

Mas, além das habilidades técnicas, cada vez mais as equipes que atuam com IA devem ter conhecimento do domínio do negócio, para interpretar os dados adequadamente e fornecer recomendações relevantes. E experiência em engenharia de software, para desenvolver soluções que funcionem no mundo real. A combinação de competências técnicas, setoriais e de engenharia exigidas dos profissionais de IA limita o tamanho do pool de talentos.

Uma organização para usar IA de forma adequada deve dispor de skills para as seguintes atividades:

a) Planejar e implementar uma estratégia de IA alinhada com às estratégias do negócio. Na verdade, devemos ter estratégias de negócios considerando IA como meio de chegar aos seus objetivos;

b) Manutenção do stack de hardware e software de IA, seja on-premise ou em cloud. Muito provavelmente veremos combinações híbridas;

c) Governança de dados;

d) Desenvolvimento de aplicações de software baseados em IA;

e) Competência para desenvolvimento, treinamento e ajuste dos algoritmos, em termos de desempenho e precisão;

f) Competência para garantir padrões éticos e de privacidade, bem como aderência à regulações que envolvam uso de IA.

Embora à primeira vista seja uma equipe similar à de desenvolvimento de software tradicional, algumas diferenças de skills são notórias. Primeiro, no desenvolvimento tradicional, são poucas as aplicações com forte ênfase em modelos matemáticos e poucos desenvolvedores são proficientes em matemática. Em IA, modelos matemáticos são o cerne. É necessário a equipe dispor de profissionais com forte base matemática e estatística.

O ciclo de desenvolvimento de software também é diferente. No software tradicional, o ciclo basicamente é especificar os objetivos do programa; escrever o código; testar o software; e entregar (colocar em produção) e manter o sistema. Em IA o ciclo é diferente:

a) você especifica os objetivos do programa, mas ao invés de escrever código,

b) busque identificar os dados necessários e explorá-los, e a partir daí

c) treinar o algoritmo com estes dados.

As etapas (b) e (c) são iterativas e o treinamento e ajuste dos algoritmos continua até que o nível de precisão desejado seja alcançado. Recomendo estudar o tutorial do Google, “Data Management Challenges in Production Machine Learning” para uma ideia mais aproximada dos desafios de desenvolver uma solução de IA. Um texto de apoio pode ser lido aqui.

Agora o algoritmo pode entrar em produção. Mas ter um modelo em produção não significa que ele precisa ser visível publicamente. Pense em uma fase piloto, onde ele deve ser exposto a dados ativos, para que sua equipe possa fazer refinamentos até atender aos requisitos que serão disponibilizados para uso aberto.

Com os dados ativos, você pode realizar testes mais exaustivos de execução e fornecer à sua equipe de IA feedback sobre o que está funcionando bem e o que não está. Nesse estágio, priorize o estabelecimento de um processo de liberação controlada e gradual. Você também deve monitorar o desempenho e a escalabilidade do seu sistema.

Planeje ciclos contínuos de melhoria, investigue e implemente refinamentos do modelo e, alterações das interfaces. Novos modelos devem ser comprovadamente superiores aos que substituem. Teste todas as alterações antes que as atualizações sejam lançadas no ambiente de produção. Esses ciclos continuarão por toda a vida útil do sistema.

Lembre-se que um sistema de IA não cessa de evoluir nunca

Lembre-se que um sistema de IA não cessa de evoluir nunca. Infelizmente na hora que você coloca um sistema de ML em produção ele começa a degradar! Para manter a inteligência do sistema de IA, teste regularmente os resultados com dados ativos, para garantir que os resultados continuem atendendo seus critérios de aceitação.

Separe budget para futuras atualizações e reciclagem, e monitore sistematicamente a degradação do desempenho. À medida que sua empresa cresce ou muda o foco, os dados (incluindo dados de séries temporais e características do produto) evoluirão e se expandirão. A reciclagem sistemática de seus sistemas deve ser um componente de sua estratégia de IA. Lembre-se de que a IA é uma capacidade, não um produto. Está sempre melhorando. Surgem novos algoritmos e as técnicas de IA que usamos hoje podem se tornar obsoletas em poucos anos.

Para complementar, sugiro dar uma olhada no artigo “Machine Learning vs Traditional Programming” para ficar bem claro as diferenças entre escrever software tradicional e desenvolver soluções de IA. E não esqueça que as soluções de IA não vivem no vácuo. Precisam estar integradas com os demais sistemas da empresa. Também muitas vezes a “parte IA” da aplicação deve estar embarcada em código tradicional que requer UI, acesso a bases de dados e sistemas tradicionais e assim por diante.

O fato de adotarmos IA não significa de modo algum acabarmos com o desenvolvimento de software programático. Ao contrário, acredito que precisaremos de mais e mais softwares tradicionais, uma vez que seu potencial será alavancado por modelos de IA embarcados neles.

*Cezar Taurion é Partner e Head of Digital Transformation da Kick Corporate Ventures e presidente do i2a2 (Instituto de Inteligência Artificial Aplicada). É autor de nove livros que abordam assuntos como Transformação Digital, Inovação, Big Data e Tecnologias Emergentes. Professor convidado da Fundação Dom Cabral. Antes, foi professor do MBA em Gestão Estratégica da TI pela FGV-RJ e da cadeira de Empreendedorismo na Internet pelo MBI da NCE/UFRJ.