A americana Laurie Garrett, analista de políticas mundiais de saúde, é uma especialista em epidemias. Ao longo de sua carreira, ela já investigou mais de 30.

Em 1996, Garrett foi vencedora do Pulitzer de Reportagem Explicativa pela cobertura do surto de Ebola no Zaire pelo jornal Newsday. A reportagem deu origem ao livro Ebola: Story of an Outbreak (Ebola: história de um surto, em tradução livre). Garrett foi também uma das consultoras técnicas do filme “Contágio” (2011).

Por esse motivo, quando Garrett fala sobre a Covid-19, ela tem a autoridade de todas essas experiências do passado. E a analista de 68 anos está preocupada e teme pelo estrago que o novo coronavírus possivelmente fará na América Latina, que, em sua visão “age lentamente” diante desse inimigo invisível.

“Tenho arrepios só de pensar no que a Covid-19 poderá fazer com as favelas de São Paulo e do Brasil, com a Venezuela e com as periferias de Lima e La Paz”, conta Garrett, em entrevista ao NeoFeed.

Garrett posiciona-se também contra o discurso do presidente Jair Bolsonaro ao pregar menos rigidez no distanciamento social. “Com a política de Bolsonaro, os países vizinhos podem culpar o Brasil por uma crise regional da Covid-19”, diz ela, referindo-se ao fato de o país já ser o líder em número de mortos pela doença na América Latina.

A postura de Bolsonaro vem ao encontro, na visão da especialista, com a mentalidade de líderes que se “recusam a suportar a enorme dor econômica necessária para controlar o vírus”. “Isso parece ser mais difícil para as economias dos BRICS (dos países emergentes), por elas contarem com o alto crescimento do PIB para impulsionar o seu desenvolvimento”, afirma ela.

Garret lembra que o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, também seguiu um caminho à parte, ao impor a maior quarentena do mundo, o que causou uma migração em massa.

“Isso resultou na maior migração interna desde a separação do Paquistão, em 1947. Agora, Modi está considerando permitir a disseminação do novo coronavírus, levando à perda de vidas, mas tornando os sobreviventes imunes.”

A controversa “imunidade de rebanho”, quando o governo “gerencia a disseminação" da doença para tornar a população imune, não seria algo aconselhável.

“Essa abordagem foi inicialmente endossada pelo primeiro-ministro britânico Boris Johnson, adiando as medidas de distanciamento social por três semanas. Agora, o Reino Unido está sobrecarregado com a Covid-19.”

É por esse motivo também que a China tem sido criticada. “Muitos setores a acusam de gerar essa pandemia ao permitir que o vírus se espalhasse, negando e omitindo informações. Isso aconteceu por seis semanas, de dezembro e janeiro, antes de a China finalmente fechar Wuhan e cerca de um terço do restante do país”, aponta Garrett.

“O problema em cada surto foi o mesmo: quando o número de casos era pequeno, os líderes davam de ombros, dizendo que um número maior de pessoas morria em acidentes de carro”

Os melhores exemplos de combate ao novo coronavírus seriam os de Cingapura, Coreia do Sul e Hong Kong. “Por serem lugares que anteriormente enfrentaram o vírus da Sars ou da Mers (outras síndromes respiratórias), eles tomaram medidas bem-sucedidas agora”, conta, citando o investimento em tecnologia de ponta em equipamentos e a aplicação de regras duras e multas altas para os desobedientes, no caso da Cingapura.

Garrett e outros analistas já sabiam que uma pandemia como a do novo coronavírus era só uma “questão de tempo”. “Só não sabíamos quando e qual seria o micróbio, já que a humanidade recebeu muitos avisos, mas todos eles foram ignorados pelos políticos”, afirma Garret, citando o HIV, o Ebola, as bactérias altamente resistentes a medicamentos, a Sars e a Mers.

“O problema em cada surto foi o mesmo: quando o número de casos era pequeno, os líderes e a população davam de ombros, dizendo que eram apenas alguns casos e que um número maior de pessoas morria em acidentes de carro”, recorda a especialista.

Mesmo quando os surtos caminhavam para uma epidemia, deixando claro a falha no controle da disseminação, a culpa era desviada. “Acabava caindo nas costas do prefeito, de um oficial de saúde, de um grupo minoritário, étnico ou religioso ou de vendedores ou caçadores de animais”, lembra Garrett.

O mundo só acordou para uma real ameaça com a Sars, em 2003, com as pessoas viajando e espalhando o vírus para outras cidades e para o exterior. “O dinheiro e os especialistas finalmente apareceram naquele momento. Até a mídia passou a focar nisso, fazendo da batalha travada contra a doença algo épico.”

O que deu errado, fazendo com que o mundo não se preparasse para algo potencialmente maior? “Quando a Sars foi inicialmente vencida, houve um momento de reflexão. Novos compromissos financeiros foram assumidos pelos países do G7, no sentido de estarmos prontos para uma próxima vez. Com o passar do tempo, no entanto, tudo acabou esquecido.”

Nem o filme “Contágio”, em que o cineasta Steven Soderbergh mostrou uma doença viral dizimando a população do globo, preocupou. E foram muitos os esforços feitos para que produção hollywoodiana abrisse os olhos, principalmente dos governantes.

“Todos os envolvidos em ‘Contágio’ se dedicaram a fazer um filme cientificamente preciso. Nada de zumbi do espaço trazendo a morte. Sabíamos que era necessário buscar um equilíbrio entre despertar a preocupação, para chamar a atenção dos líderes mundiais, mas sem fazer sensacionalismo, no caso de irmos além das evidências disponíveis”, conta Garrett.

Ela dividiu a consultoria técnica com W. Ian Lipkin, diretor do Centro de Infecção e Imunidade da Universidade Columbia, que foi infectado pelo novo coronavírus no mês passado, e com o epidemiologista Larry Brilliant.

“Tudo o que você vê no filme é baseado em algo que um de nós realmente testemunhou. Ou durante uma epidemia de verdade ou durante algum exercício em que oficiais do governo tomam decisões diante de uma pandemia simulada.”

Mas a intenção do trio nunca foi fazer uma profecia, como “Contágio” passou a ser encarado nos últimos meses. “Só fizemos o possível para alertar”, recorda a analista.

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