Como CEO e principal acionista da Wirecard por duas décadas, Markus Braun moldou a imagem de um empresário crível e incisivo. Com essa estratégia, foi bem-recebido pelos investidores da então maior fintech da Alemanha.

Vestido de gola preta alta, ou ao estilo de alfaiataria prestigiada no setor de tecnologia, o austríaco elevou o negócio de meios de pagamento online - com receita “discretamente” proveniente de transações ligadas a jogos de azar e pornografia - ao seleto grupo das maiores empresas do país.

Braun chegou a ser chamado de "Steve Jobs dos Alpes". A comparação com o fundador da Apple refletia o desejo dos alemães em modernizar o seu quadro corporativo, formado por companhias tradicionais como Volkswagen, Siemens e BMW.

Para ostentar uma empresa líder no segmento digital, no “modelo do Vale do Silício”, as autoridades alemãs fecharam os olhos para a sofisticada rede de fraudes que envolveu toda a operação da fintech. Assim, durante duas décadas, o maior crime financeiro da história da Alemanha tomou forma.

A queda não foi pequena. Ao pedir falência, em junho de 2020, a Wirecard deixou em aberto uma dívida de US$ 4 bilhões. O preço das suas ações despencou 98%. A sequência de fatos que culminou na derrocada da companhia é contada no documentário "O Escândalo da Wirecard", produzido pela Netflix.

A obra, que acaba de estrear na plataforma, é baseada no livro “Money Man - A Hot Startup, a Billion Dollar Fraud” (Homem do dinheiro: uma startup em evidência, uma fraude de bilhões de dólares, na tradução), escrito pelo jornalista Dan McCrum.

Markus Braun, CEO e principal acionista da Wirecard por duas décadas

Como repórter do Financial Times, ele se debruçou durante seis anos em documentos e pistas sobre o esquema de vendas forjadas e manipulação dos balanços da Wirecard para contar em detalhes as fraudes da companhia. O material foi publicado em uma série de reportagens no jornal inglês a partir de 2015.

Apesar das evidências de irregularidades terem vindo a público por meio do jornal, a empresa negou de maneira veemente as acusações. Com ações negociadas desde 2005 na bolsa de Frankfurt, a companhia contou com o apoio da entidade de supervisão financeira da Alemanha, BanFin, na sua defesa.

Como principal porta-voz do negócio, Braun alimentou durante anos a narrativa de que os textos do Financial Times corroboravam com um plano dos investidores que operam em posição vendida - alugam ações e depois vendem, esperando que o preço caia para recomprá-las mais baratas. Ele afirmava que, em busca de lucro, queriam destruir a empresa.

Esses investidores são céticos, treinados para encontrar inconsistências nos fundamentos das companhias. Por isso, foram os primeiros a farejar que algo estava errado na operação e quando encontraram provas, passaram a compartilhá-las com McCrum. “Estamos falando de milhares de dólares escondido nas sombras”, diz o jornalista no documentário.

Ao analisar os documentos, ele chegou à conclusão de que a operação tinha sido montada para lavar dinheiro por meio da prática de round-trip, na qual transações duvidosas são feitas entre empresas sediadas em diferentes países, o que dificultou o trabalho da auditoria da Ernst Young (EY), que atestou os balanços da companhia.

O jornalista Dan McCrum, do Financial Times, dedicou-se a investigação por seis anos

O documentário é eletrizante e vai ganhando ares de thriller ao mostrar o desenrolar das investigações e o contra-ataque da companhia. O filme ganha ritmo com várias cenas reconstituídas como história em quadrinhos.

Após a publicação das denúncias, por exemplo, a Wirecard montou uma rede de espionagem para acompanhar os passos não só de McCrum e de outros funcionários do FT, como dos investidores que apostavam contra as ações da empresa.

Seus “funcionários” passaram a coagir os envolvidos. “Os homens que me abordaram pareciam ser exatamente como imaginamos os bandidos”, diz um investidor que foi intimidado, em seu depoimento no filme. Depois disso, disse ele, “ninguém mais olhou atentamente para a Wirecard, exceto McCrum”.

O documentário joga luz em Jan Marselek, então diretor financeiro da companhia, considerado braço direito de Braun e apontado como o mentor do esquema de fraudes. No filme, fica estabelecida sua ligação com a Rússia e a suspeita de que tenha usado a Wirecard para transações na Líbia em benefício do país de Putin. Ele também é apontado como o articulador das ameaças, tentativa de suborno e “armadilhas” para o Financial Times.

As denúncias do jornal recheadas de provas e depoimentos de ex-funcionários, contudo, não emplacavam. As ações da Wirecard estavam entre as preferidas dos investidores alemães, que viam na expansão (fictícia) global da companhia, especialmente na Ásia, uma enorme fonte potencial de receita.

Em 2016, a empresa entrou nos Estados Unidos após comprar a operação de cartões pré-pagos do Citigroup. No mesmo ano, a alemã chegou no Brasil com a aquisição da startup mineira Moip - posteriormente comprada pela PagSeguro.

Em 2018, a cotação dos papéis disparou, e a Wirecard passou a ser negociada no Dax, principal índice de ações da Alemanha. Seu valor de mercado chegou a US$ 28 bilhões, e ultrapassou nas casas decimais o do Deutsche Bank, principal banco do país.

Foi depois de receber um aporte contábil de US$ 1 bilhão do Softbank, em 2019, que os problemas da Wirecard finalmente vieram à tona. Com novas reportagens questionando a contabilidade da empresa, aumentou a pressão dos investidores sobre a Wirecard, que contratou a KPMG para fazer uma auditoria especial.

Os auditores não localizaram US$ 2,1 bilhões referente às reservas da empresa, informação que foi confirmada posteriormente pela EY. Sem conseguir contornar a situação dessa vez, Braun admitiu que o dinheiro não existia.

Em junho de 2020, o executivo renunciou à presidência, e dias depois foi preso em Munique. Jan Marselek desapareceu, acredita-se que fugiu para Moscou, e é até hoje procurado pela Interpol. A Wirecard entrou em falência, e a Alemanha voltou a ter somente uma única grande empresa de tecnologia, a SAP.

O então ministro de finanças da Alemanha, Olaf Scholz, - hoje chanceler da Alemanha - descreveu o colapso como um “escândalo”, e reconheceu que a regulamentação precisava ser revisada.

Braun se declarou inocente, mas o tribunal de Munique acatou as acusações contra o ex-executivo por suposta fraude, quebra de confiança e manipulação contábil. Seu julgamento deve acontecer no fim deste ano ou início de 2023. E ele poderá passar até 10 anos na prisão.

Correção: a primeira versão desta reportagem informava que a Moip foi comprada pela PayPal. A informação correta é que ela foi comprada pela PagSeguro.